O Melhor Está Por Vir
Aceitar o hoje e reavaliar o passado
Por Pedro Sales
Festival de Cannes 2023
Toda história, invariavelmente, tem um pouco do autor. Seja na literatura, na música ou no cinema, os artistas vez ou outra se inspiram nas próprias vivências para criar. O cineasta italiano Nanni Moretti ficou conhecido por levar esse caráter autobiográfico ainda mais adiante. Em “Caro Diário”, vencedor do prêmio de melhor direção no Festival de Cannes 1994, o diretor interpreta a si próprio com roteiro baseado em seus diários. O mesmo viria a se repetir no excelente “Abril”, em que o cineasta conjectura sobre política, cinema e paternidade. Portanto, estar diante das câmeras é algo que Moretti sempre fez, como Buster Keaton e Woody Allen. No novo longa do italiano, “O Melhor Está Por Vir“, a carga autobiográfica de antes dá vez a uma comédia dramática com ares de autoficção, em que ele interpreta um diretor com problemas na produção, no roteiro e até no casamento.
Giovanni (Nanni Moretti) é um cineasta beirando os 70 anos de idade. Seu mais novo projeto diz respeito à visita de um circo húngaro a uma pequena comuna italiana. Esse intercâmbio cultural é determinante para causar rachas na célula do Partido Comunista Italiano da vila. Ou eles seguem o que foi dito pela liderança partidária: apoiar a União Soviética, ou ficam ao lado dos húngaros à beira da revolução, em 1956. Essa história que ele se propõe a filmar poderia ser o mais importante do filme. Moretti, no entanto, adiciona todos empecilhos das filmagens, as dificuldades no set e também os desafios no casamento prestes a terminar. Dessa forma, a obra supera a mera metalinguagem para avançar em um aspecto tragicômico. O diretor reavalia não só o mercado cinematográfico, mas de certa forma a própria carreira ao assumir essa pessoalidade que vem do fato de ser o protagonista do longa, um cineasta comunista mais velho.
As semelhanças entre Nanni e Giovanni – verdadeiro nome de batismo de Moretti usado por vários personagens que ele interpreta – são aparentes e nisso reside ainda mais o caráter de autoficcção e da reavaliação da própria carreira. Entretanto, nada disso é calcado na autopiedade e comiseração. Giovanni mantém o bom humor apesar das adversidades, crendo piamente no título do longa, que soa quase como uma promessa. O humor é, então, parte fundamental de “O Melhor Está Por Vir“. A atriz Vera (Barbora Bobulova), por exemplo, tenta insistentemente beijar Ennio (Silvio Orlando), com quem contracena, pois crê na existência de uma química não escrita no roteiro. Tal situação cria uma rusga com o diretor que mesmo repetida mantém a graça. Isso também acontece ao conhecer o namorado da filha, muito mais velho. O aspecto mais ácido e crítico, por outro lado, materializa-se em uma das cenas que Giovanni tenta vender seu filme para a Netflix e os 190 países onde o serviço atua. O comentário vai desde fórmulas prontas, viradas de roteiro e retenção de público até para como o cinema de Moretti é visto. “Um slow burn movie que nunca explode”, segundo uma das executivas.
Esse bom humor nas piadas ganha um tom gracioso com inserções musicais. No carro com a esposa Paola (Margherita Buy), o protagonista diz ter uma ideia de um filme sobre a crise de um casal junto há mais de 40 anos cheio de músicas italianas. Se por um lado o filme diegeticamente feito é do circo, do outro o espectador acompanha, na prática, um pouco desses dois: o filme fictício e outro sobre um casamento prestes a ruir. Giovanni parece nunca aceitar esse fim e até contesta apelando para o tempo que ficaram juntos. No meio disso, algumas sequências musicais se desenrolam, cantando no carro, no set de filmagens ou simplesmente girando após um pensamento intrusivo antecedendo as últimas gravações do longa. A fotografia, nesse sentido, evidencia duas diferentes linguagens ao longo da obra. Quando o público vê cenas do filme que Giovanni está gravando, a câmera assume uma sobriedade maior de filme de época, evitando movimentos, à exceção das discretas panorâmicas. Enquanto na vida do diretor em si, existe uma liberdade maior para imagem, travellings no estúdio e uma câmera que o acompanha de patinete elétrico, por exemplo.
“O Melhor Está Por Vir” é um prato cheio para cinéfilos e fãs de Nanni Moretti. O espectador ao ter contato com Giovanni, o protagonista, pergunta-se quanto daquilo será que é personagem e quanto será que é o próprio diretor. O processo criativo dele também é assistir à “Lola”, de Jacques Demy, e tomar gelato? O título faz jus ao filme e sua onda otimista. Por mais que existam tantos problemas na produção do filme e no casamento, Giovanni ainda lida com tudo sob um humor bem particular. Humor que às vezes beira o desconfortável como quando ele interfere em uma cena de morte de um outro filme, evocando Kieslowski em “Não Matarás” e a arte de Martin Scorsese para filmar o ato. Ou seja, este filme é sobre cinema, política, como todos de Moretti, e também sobre envelhecer, sobre aceitar o hoje e reavaliar o passado. Em alguns momentos, olhando para o retrovisor e para aqueles que o inspiraram, Irmãos Taviani, Fellini, referenciado diretamente com a “A Doce Vida”, e indiretamente “8 e 1/2″ num encerramento burlesco com banda, circo e a certeza de um futuro ainda melhor.
1 Comentário para "O Melhor Está Por Vir"
Excelente análise.