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O Mal Não Existe

Fogo Lento

Por João Lanari Bo

Festival de Veneza 2023

O Mal Não Existe

Quando usar o fogo alto e o fogo baixo? O fogo baixo segura o líquido na hora de fazer uma sopa, um caldo. Usa-se a temperatura baixa quando é preciso que o líquido fique ali, contido, sem evaporar, ou quando é preciso que o cozimento seja lento (Carole Crema, chef)

O Mal Não Existe” é o longa que Ryûsuke Hamaguchi – cineasta de “Happy Hour: Hora Feliz”, “Drive my car” e “Roda do Destino” – lançou em 2023. Mais uma etapa desse diligente operador do audiovisual, atento ao estudo dos personagens e ao movimento destes no tempo e espaço. No universo contemporâneo de altos e baixos projetos cinematográficos, altos e baixos dispêndios de capital, Hamaguchi foi dos poucos a furar a bolha e obter indicação, em 2021, ao Oscar de melhor filme internacional, com “Drive my car” – que também foi indicado para melhor diretor, melhor roteiro e melhor filme na categoria geral, aquela dominada pelas produções norte-americanas. Isso tudo sem falar em Cannes – ganhou o melhor roteiro. Para uma história de três horas de duração, falada em japonês, não é pouca coisa.

É, na verdade, um fenômeno inusitado, uma espécie de brecha que muito raramente se abre no maciço edifício da narrativa convencional, voltada para o divertimento inerte e desencarnado, como dizia Jean Cayrol. Desta feita, a estratégia de Hamaguchi, inocente e quase pueril, foi apostar num fogo lento narrativo que culmina numa ebulição fugaz e visceral. “O Mal Não Existe” abre com imagens desorientadoras, copas de árvores filmadas do ponto de vista de quem olha do chão, verticalmente: a trilha musical – escrita por Eiko Ishibashi, parceria central do projeto – concorre para o efeito de equilíbrio tênue. O take é lento e prolongado, dando o tom do que vem a seguir.

Entra em cena Hakumi, cortando lenha, com perícia e paciência. Ele é viúvo, pai de Hana, fala pouco, mas seguro. É um faz-tudo, um Benriya local, tal como é introduzido pelo líder da pequena comunidade de Mizubiki, não muito longe de Tóquio. Benriya é um perfil popular na cultura pop do país-arquipélago. Hakumi, por sua vez, é Hitoshi Omika, assistente de direção de Hamaguchi em “Roda do Destino” – desta vez, ator. A lentidão dos movimentos de Hakumi constrói um espaço de percepção calmo e ameno: além da lenha, ele coleta água em um riacho e colhe wasabi selvagem, junto com o amigo, dono do minúsculo restaurante de macarrão udon – feito de farinha, servido normalmente como sopa, em caldo quente – do vilarejo. Hakumi esquece e chega atrasado para pegar a filha na escola. Seu carro é um SUV prateado, Toyota ou Mitsubishi.

Um corte abrupto da música sugere um mau presságio. Alguém resolve investir em um “glamping”, corruptela de “glamorous camping”, naquela microrregião. Embora perto da capital, Mizubiki nunca havia atraído investimento em turismo, um business poderoso na terra do sol nascente. Depois da 2ª guerra, a área foi desapropriada e repartida entre veteranos e vítimas do conflito, informa Hakumi. Dois funcionários da empresa, mulher e homem, chegam para apresentar o projeto: instala-se o conflito, a comunidade resiste, Hakumi alerta para a inevitável contaminação da água, em virtude da localização prevista da fossa. Fossa, unidade de tratamento primário de esgoto, aqui funcionando também como ponto de virada dramático.

Tudo é simples e direto nessa produção desdramatizada, tudo é dito e representado em fogo lento, contido, sem evaporar. Os funcionários vão e vem de Tóquio ruminando conversas – Hamaguchi aprecia esse espaço de diálogo em movimento, fez um filme em cima disso – e perfazem uma catarse de consciência, realizando a falta de escrúpulos do capital selvagem investidor. Os argumentos dos chefes, secos e caricaturais, corroboram a percepção. O ápice é a solução proposta para contornar o problema: contratar Hakumi como zelador do “glamping”. Ele, sem mudar a expressão, recusa – estou ocupado.

Um filme ecológico low key como “O Mal Não Existe” teve até subproduto – uma versão silenciosa, editada em paralelo, para ser exibida em performances de Eiko Ishibashi, intitulada “Gift”.

A simplicidade e a despretensão de Hamaguchi não o impediram de faturar o Leão de Ouro no Festival de Veneza, em 2023 – de novo, não é pouca coisa.

Hamaguchi assistiu quatro apresentações de “Gift” com Ishibashi no Lincoln Center, em Nova York. Na ocasião, disse em entrevista:

Quando assisti aquela cena em que Takumi carrega a filha nas costas, tive a sensação de estar assistindo aquela cena pela primeira vez. Fiquei muito emocionado com isso…eu deveria, para todos os efeitos, conhecer muito bem a cena. Mas tive a sensação de que estava vendo tudo isso pela primeira vez, e foi uma experiência muito valiosa.

4 Nota do Crítico 5 1

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