O Jardineiro, o Budista e o Espião
Verdades e Mentiras
Por João Lanari Bo
Assistido durante o Festival É tudo verdade 2025
“O Jardineiro, o Budista e o Espião”: o título do documentário de Havard Bustnes, de 2025, remete a um daqueles filmes de Peter Greenaway que marcaram o cinema no fim do século passado – desta feita, entretanto, estamos na alvorada do novo milênio, em plena vertigem digital da era internet, em que a informação circula e colapsa na velocidade da luz. O personagem-foco da fita é Rob Moore, que trabalhou por vários anos como “espião” corporativo para a K2, uma agência privada de inteligência, reportando sobre ativistas antiamianto. Chocado e perplexo, mudou de lado, tentou ajudar seus novos “amigos” ativistas, mas não deu certo – acabou escanteado por ambos, K2 e ativistas.
Logo na sequência inicial somos introduzidos às habilidades de Moore, um sofisticado jardineiro. Sua fala mansa e requintada trai a origem social (na Inglaterra a luta de classes começa no sotaque). O documentarista Bustnes, um norueguês radicado em Londres, parece não perceber essas nuances: Não conheço a sociedade britânica e não conheço a língua britânica, confessou em entrevista. Mas se esforça, com toda cortesia possível, em aproximar-se do seu objeto. O caso de Moore, infiltrado em organizações não-governamentais de protesto contra o comércio global de amianto, fez sensação na imprensa inglesa. Era um assunto e tanto, pensou, admitindo também que ficou fascinado pela jardinagem de Moore, pelo contraste entre flores e plantas e a indústria de um dos materiais mais contagiosos do planeta – amianto.
O amianto, como sabemos, foi incluído no grupo principal de substâncias cancerígenas pela OMS. Cerca de 125 milhões de pessoas estão expostas à substância em todo o mundo, e pelo menos 107 mil morrem anualmente de doenças associadas a ela. Por esse motivo, o amianto já foi banido em mais de 60 países (no Brasil foi em 2017). Rússia e Cazaquistão continuam produzindo o mineral – e teriam sido lobistas por trás desses produtores que contrataram a K2, para Rob Moore obter informações privilegiadas sobre a rede de ONGs que atua contra a comercialização de amianto.
Até aqui, nada de novo – “O Jardineiro, o Budista e o Espião” seria mais um libelo denunciando uma conspiração internacional maligna (a K2, acionada pelos ativistas por violação de privacidade, reconheceu a operação e fez acordo fora do tribunal para encerrar o litígio). Mas as relações entre o diretor e seu personagem ficaram tensas durante as filmagens – Moore chamou Bustnes de “parasita” e acusou-o de manter-se “voyeuristicamente” à margem da contenda. Nesse momento, ocorre o twist que salva o documentário da mesmice estéril: Rob Moore aceita participar de um podcast com uma conhecida dupla de jornalistas investigativos, Ceri Thomas e Alexi Mostrous. O que seria o fim do filme, que perderia obviamente o impacto, deu uma reviravolta: Bustnes percebeu que melhor do que fazer um doc sobre Moore, seria fazer um doc sobre alguém que quer escrutinar as peripécias do whistleblower, espremido entre as grandes corporações de amianto e a indignação dos militantes antiamianto!
“O Jardineiro, o Budista e o Espião” deriva para uma investigação em segundo grau, uma metalinguagem construída dentro da linguagem mesma. Moore, budista praticante, de alguma forma aceitou esse jogo duplo, algo que, bem ou mal, estava acostumado a fazer. Para infiltrar-se entre os ativistas, aliás, Moore tinha se apresentado como documentarista, e chegou a produzir filmes denunciando as perversidades dos produtores de amianto. Não obstante, alerta Bustnes tentando retomar as rédeas da sua produção, não se trata de um “filme podcast” – o seu é um verdadeiro documentário, com todos seus detalhes. Não faltam momentos onde critica os podcasters, e também a si mesmo, sempre dentro das regras de boa convivência.
Jorge Luis Borges, ilustre personagem que despistava e desconstruia referências mentais entranhadas na cultura, escreveu que o mais famoso filme de Welles, “Cidadão Kane”, parecia “um labirinto sem centro”. A mesma sensação pode ser extraída dessa narrativa eclética, para dizer o mínimo. Mas sem dúvida estimulante, sobretudo para o diretor – que assiste o objeto do seu documentário descamar-se como uma cebola. Uma obra de arte é sempre uma cebola, é sempre uma quantidade de cascas dentro das ouras, dentro das outras, dentro das outras, já dizia o artista Tunga.
Nesse labirinto sem centro a discórdia e a fricção parecem inevitáveis, em qualquer das camadas ou entre elas. Rob Moore encrencou-se também com os podcasters, sobretudo com Alexi. Já Bustnes segue insistindo que Moore, apesar dos pesares, é uma ótima companhia. Reconhece, contudo, que o relacionamento entre eles é complicado, e conclui: Compreensivelmente, esta é uma história muito difícil para o Rob.