O Homem Cordial
A cordialidade brasileira
Por Marcelo Velloso
Festival de Gramado 2019
“O Homem Cordial” (2019) de Iberê Carvalho (de “O Último Cine Drive-In”), que também assina o roteiro ao lado do uruguaio Pablo Stoll (“Wisky”, 2003), desenvolve-se a partir de um vídeo viralizado na internet do exato momento em que um menino é interceptado por diversas pessoas que o acusam de ter furtado o celular de uma senhora. A questão é que um astro de uma banda punk rock dos anos 80 que estava passando na ocasião, aparece na imagem tentando impedir que o menino fosse agredido. Como um policial foi morto logo após a fuga do menino, o fato ganha relevância e o tal vídeo viraliza nas redes sociais, de forma que Aurélio, o roqueiro interpretado por Paulo Miklos (ator de “É Proibido Fumar”, “O Invasor”, “Estômago”, “Carrossel” e cantor do grupo “Titãs”) e é perseguido e atacado tanto nas ruas, como nas redes sociais.
O filme nos apresenta o ponto de vista de Aurélio, um homem de 60 anos, heterossexual, branco e pertencente a uma camada privilegiada da sociedade brasileira que se vê completamente perdido sem saber como sair daquela situação conflituosa. A onda de ódio e a disseminação de proporção incontrolável pelas redes sociais e canais de notícias vão encurralando o personagem central. Desse modo, o que era pra ser um show de retorno da sua banda se torna um pesadelo. “O Homem cordial” (Distrito Federal), que integra a mostra competitiva do 47o Festival de Cinema de Gramado, embasa-se no conceito da sociologia que foi desenvolvido por Sérgio Buarque de Holanda no seu livro “Raízes do Brasil” de 1936 e que se utiliza da etimologia da palavra para dar relevância a sua dubiedade e a sua aplicação a que segundo sua visão resume o temperamento do brasileiro. No livro o autor descreve que homem cordial “é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. Além disso, a polidez é, de algum modo, organização da defesa ante a sociedade”. Certamente ao dar esse nome ao filme, Iberê sugere a relação com o termo e, sim, pertinente e cabível.
Alguns desconfortos são gerados em diversos momentos do filme, por diversas questões abordadas, afinal “O Homem Cordial” entra em questões e temas atuais com visões conflitantes devido à dualidade abordada no filme, não diferente do que está latente no Brasil atual. A cena em que Matheus está entre as grades gera agonia e logo os espectadores indagam-se de quando aquela espera do menino vai acabar. O tempo é extenso e até incomoda pela aparente inércia e pelo silêncio da cena, o que logicamente foi intencional, mas ao aprofundar, nós entendemos o porquê da escolha e o incômodo a partir daí passa a ser outro. “O Homem Cordial” é ambientado na cidade de São Paulo e traz como locações os seus diversos ambientes que denotam o agito da cidade, o que condiz com o ritmo do filme. O longa-metragem faz uso do plano-sequência em diversos momentos e de forma bem eficiente, mérito da fotografia de Pablo Baião (vencedor do Kikito de melhor fotografia do último Festival de Cinema de Gramado pelo trabalho em “Simonal“) e da montagem de Nina Galanternick. A câmera muitas das vezes se comporta como uma personagem. Aos planos no protagonista consegue captar diversas reações suas que evidenciam ainda mais a qualidade do trabalho do ator.
O elenco apresenta um bom desempenho no geral, com destaque para Paulo Miklos, protagoniza que fornece nuances necessárias à linha dramática da sua personagem. Tamirys O’hanna é outra com um desempenho muito bom na telona, a atriz consegue passar a força cabível a uma irmã que tem seu filho sumido e nos momentos certos, sem exageros. O pioneiro do hip-hop nacional Thaíde também participa do filme e com seu carisma tem função importante no longa-metragem interpretando antigo companheiro da banda de Aurélio.
A obra fica aberta em alguns aspectos, permitindo que o público faça suas interpretações, o que acaba extraindo de nós de certa forma o posicionamento naquele universo conflituoso. O incômodo vem, principalmente em algumas cenas que denotam o racismo e a violência. Por diversas vezes você se põe a refletir sobre a questão central do filme, em que “certezas” alimentam comportamentos odiosos e reativos sem que se tenham provas concretas. Deste modo, alguns desfechos ficam por nossa conta.
“O Homem Cordial” trata-se de um bom filme, com uma boa proposta, com boas referências e que consegue prender a atenção do público, mas que ao mesmo tempo não traz nada de extraordinário. Inicialmente, a gente se pergunta sobre como foi a morte do policial, mas no final isso fica esclarecido. “À época, o Brasil vivia o início de uma polarização política, mas que não se expressava de forma tão violenta e extremista como hoje. Quando filmamos, em meados de 2018, na véspera da eleição, o clima já era outro e esse novo cenário foi incorporado ao universo do filme. Mesmo assim, em setembro de 2018, quando a montadora Nina Galanternick assistiu ao material bruto, ela temeu que as cenas estivessem um pouco exageradas no tom e no seu desenrolar. Três meses depois, ela me confessou que sua percepção sobre as cenas havia mudado completamente, que agora elas lhe pareciam até suaves perto dos episódios de intolerância e violência que vinham acontecendo no Brasil”, conta o diretor. “Estamos vivendo um momento tão estranho e revelador de nossa sociedade que é impossível qualquer ficção ter a pretensão de acompanhar a realidade”, finaliza.