O Grito
Aterrorizante em Diversos Sentidos
Por Daniel Guimarães
A atmosfera de uma obra cinematográfica dentro do terror talvez seja mais importante do que em qualquer outro gênero. Os elementos técnicos entram em sincronia para criar a mística, o estranho e o incompreensível de forma a fazer como protagonista seu próprio universo. São infinitos os exemplos que o fazem brilhantemente. Para ficarmos só nos mais recentes, “Nós” e “Um Lugar Silencioso“ são dois deles. A versão de 2020 de “O Grito” flerta com uma atmosfera interessante, mas parece nunca acreditar nela de fato e cai no artifício da exposição de seus mistérios. Para o estilo do filme dentro do gênero, funciona como uma camisa de força em sua própria experiência.
O longa-metragem, dirigido por Nicolas Pesce, é uma nova versão do filme “Ju-on: O Grito” (2004), de Takashi Shimizu. Aqui, conta a história de uma casa assombrada, onde constantes acontecimentos e mortes incomuns ocorrem desde que Fiona Landers (Tara Westwood) assassinou sua própria família no local. Desde o começo,a obra se mostra confusa no recorte que deseja explorar. As aparições demoníacas, em um primeiro momento, ocorrem de maneiras interessantes. Mesmo abusando do já cansativo jump scare, a fotografia é eficiente como pode, utilizando de planos alternativos ao padrão, mesmo sendo dirigida em uma narrativa pouco criativa. Em sincronia com seu ótimo design de som – remetendo aos sons das criaturas no game “The Last of Us” – e seus efeitos visuais, ambos fatores de qualidade constantes durante todo a produção.
Porém, paralelamente ao grafismo inicial, o filme parece nunca de fato abraçar seu potencial de horror gráfico, sufocante e de ambiente como um todo. Insere dramas de personagens extremamente genéricos e sempre presentes em roteiros de produções norte-americanas desta natureza. Na tentativa de fazê-lo, aparentemente todos os personagens sofrem com perdas familiares, que são simplesmente atiradas pelo texto em algumas sequências, na expectativa de que identificação e empatia brotem no espectador a despeito dessa conduta arbitrária.
“O Grito”, porém, mesmo com alguns méritos visuais, já dava algumas dicas do caminho estético que iria seguir, ao reaproveitar convenções “batidas” do gênero. O próprio mote da casa mal-assombrada é um deles, mas vamos nos permitir ir além: crianças extremamente pálidas com seu cabelo preto escorrido no rosto, aparições repentinas pelas costas de personagens (e que somem no momento em que se viram), protagonista em conflito com seu chefe policial que nega o sobrenatural (e que na verdade quer convencer a si mesmo em prol da própria sanidade), dentre outros. Qualquer um que já assistiu alguma obra dentro dessa vertente do terror poderia continuar essa lista sem esforço.
Para além das vícios do gênero, ao final do primeiro ato e começo do segundo, o longa-metragem mostra, em sua estrutura narrativa, seu pior e mais atenuante defeito. O cineasta Nicolas Pesce e a montagem da dupla Ken Blackwell e Gardner Gould parecem perdidos na experiência que desejam transmitir. O filme se transforma em um compilado de esquetes de terror em volta da casa amaldiçoada. Mostram-se cenas que não possuem a menor importância no desenvolvimento narrativo ou dos personagens e corta-se entre o tempo de maneira confusa e ilógica. Mesmo nas raras vezes em que acerta, como ao conectar o primeiro ao terceiro ato com uma vítima de um acidente automobilístico, o longa-metragem volta a expor e explicar didaticamente o que acabamos de entender perfeitamente na tela, reprimindo o desenrolar dramático em prol da repetição.
Essa composição de esquetes talvez funcionasse melhor na formatação de uma série de TV, onde os produtores pudessem entregar diferentes episódios sem soar prolixo como “O Grito” acaba se revelando. Aqui passa-se a maior parte do tempo pincelando as (poucas) boas cenas, que funcionam visualmente e outras (muitas) que se repetem não só de outros filmes, mas também dentro de si mesmo. Ao invés de buscar uma conjuntura narrativa através da personagem da detetive Muldoon (Andrea Riseborough), com dramas e relações superficiais e uma montagem ineficiente, era preferível que de fato se assumisse realmente como um compilado de contos de terror (como “A Balada de Buster Scruggs“, dos irmãos Coen, faz com o faroeste).
Como um crítico nunca deve negar ou omitir sua própria experiência, “O Grito” funcionará para os espectadores que admiram e se divertem com o susto irracional, pois a sensação é, de fato, péssima todas as vezes que um demônio salta a tela e o som se eleva. Porém, ao levantar-se da sessão, – e após os 20 minutos de coração acelerado – perceberá que já se lembra pouco de sua história ou narrativa, visto que são inexistentes. Pior ainda será notar que as cenas “marcantes” e assustadoras da obra que acabara de ver estão se confundindo na memória, se aglomerando aceleradamente com a de outras centenas de produções idênticas.