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O Filho do Homem

O Filho do HomemO Filho do Homem

A Palavra e Tão Somente a Palavra

Por Michel Araújo

Projeta às 7 Cinemark

 

A filmografia brasileira religiosa cristã é extensa em vista do financiamento de instituições quer ortodoxas, pentecostais, e em especial as neopentecostais. Títulos recentes ilustram o cenário do cinema bíblico nacional como é o caso de “Os Dez Mandamentos – O Filme” (2016), dirigido por Alexandre Avancini e produzido pela RecordTV, já antecedido pela clássica epopéia de 1956 de Cecil B. DeMille. No caso de “O Filho do Homem” (2018), dirigido por Alexandre Machafer, há antecessores cinematográficos da biografia de Jesus Cristo os quais já estabeleceram seus respectivos marcos, tais quais “A Última Tentação de Cristo” (1988), de Martin Scorsese e “A Paixão de Cristo” (2004), de Mel Gibson. Quer Machafer e sua equipe tenham visto ou não ambas as obras acima citadas permanecerá pelo restante deste texto uma incógnita, sendo ponto pacífico que há diversas similaridades entre este mais recente título, primeira produção da equipe Cesgranrio, e os anteriores.

“O Filho do Homem” conta em ordem não-cronológica a história de vida de Jesus Cristo segundo o Novo Testamento, desde seu nascimento até sua prisão, crucificação, morte e ressurreição. A ordem não-cronológica não possui caráter dramático ou mesmo psicológico efetivo, e aparenta ser mais, no entanto, um disfarce para as diversas elipses presentes no filme. As atuações em geral são extremamente rasas, além do trabalho de encenação ser pobre por uma falta de exploração do espaço, trabalho de corpo dos atores e mesmo de uma ambientação mais crível.

E em se tratando de ambientação crível, a escolha de atores traz a tona um ponto histórico revisitado por diversas vezes acerca da representação de Cristo. Visto que a ascendência de Jesus é de origens árabes (Nazaré), bem como a cidade em que nasceu é Belém, cidade palestina, sua etnia certamente estaria mais próxima do árabe do que o branco europeu que se disseminou na representação ocidental. Para uma produção brasileira no ano de 2019 é no mínimo tolo ainda ceder às tradições de representação étnicas eurocêntricas. Essa página já deveria ter sido virada há tempos, especialmente num país latino-americano terceiromundista.

A qualidade técnica que, sem sombra de dúvida, mais enfraquece a ambientação é a iluminação. Ao invés do uso de luz natural, com os diversos contrastes que ela oferece, suas sombras e seus decalques, a iluminação utilizada é claramente artificial (ou no mínimo, exacerbadamente controlada). Uma tomada externa à noite (ou mesmo uma tomada interna de dia, que é definitivamente o ambiente mais controlado possível em termos de iluminação, excetuando a filmagem em estúdio) não tem o mesmo impacto de ambientação se estão descaradamente sendo usados refletores e um trabalho de luz pasteurizado para “esclarecer” a imagem.

Tendo “O Filho do Homem” sendo gravado no Rio de Janeiro em locações como Pedreira Singra, Forte de Santa Cruz, Outeiro da Glória, a naturalidade e crueza da luz quente carioca poderiam ter sido usados ao máximo favor do drama da obra. Algumas tomadas externas diurnas tem forte luz direta ao invés da luz difusa característica de dias nublados, o que já é melhor do que nada. Fora o exemplo anterior, a iluminação – e suas implicações para o drama, cenografia e encenação – é pedante.

O que o filme parece tomar como propulsão dramática principal é o uso da citação ipsis litteris de passagens conhecidas das escrituras bíblicas. O impacto pretendido pela citação e reconhecimento das palavras certamente não é atingido, e os fatores para esse tropeço são diversos: as já citadas atuação e encenação pouco esforçadas, bem como o roteiro e encaminhamento dramáticos por demais preguiçosos. A temática do mito cristão não é um problema em si, é de certo um trabalho interessante dar nova luz a uma história tão crucial para formação cultural do Ocidente, entretanto é aqui empregada por esse novo filme não uma nova luz, mas uma pobre e velha luz (figura de linguagem oportuna, no mínimo).

Para além das qualidade que cercam a história, a história possui elipses relativas aos ensinamentos de Jesus e diversos episódios marcantes de sua vida que poderiam aprofundá-lo enquanto personagem principal da obra, ao invés dessa construção que parece de um homem desde o princípio ciente de suas pré-destinações. É de uma ingenuidade tremenda crer que os aproximados 120 minutos da obra dão conta dos quatro evangelhos do Novo Testamento. Mesmo os episódios que o filme inclui sequer manter seu rigor às características míticas mais dramaticamente carregadas das escrituras cristãs.

Dois exemplos irão esclarecer: primeiramente, a representação de Tomé, e sua reação quando da chegada da notícia da ressurreição de Cristo. Como bem se sabe, Tomé foi o único dos apóstolos que exigiu prova física da ressurreição de Cristo, e a qual obteve, e somente então creu. Após Cristo dizer a Tomé que lhe tocasse as chagas da mão e da costela (João 20:27), este creu e o episódio “A Incredulidade de São Tomé” é dos mais belamente representados pela tradição pictórica – a obra de Caravaggio é, decerto, o melhor exemplo.

Em “O Filho do Homem”, parece que apenas as palavras importam, e toda a força potencial do jogo de cena são completamente desperdiçados. E em segundo lugar, o encontro de Maria Madalena com Cristo quando este sai de sepulcro. Cristo pede que Maria não o detenha (João 20:17), que no latim original, “noli me tangere”, se traduziria literalmente como “não me toque”. A força do credo na ausência da prova física é um tema pertinente e importante no episódio da ressurreição de Cristo, entretanto no filme Maria Madalena o toca. Ela o vê, e o toca.

O trabalho de adaptação, bem como a leitura das Escrituras Sagradas, bem como a sensibilidade poética e o conhecimento de toda a tradição de representação do mito cristão decepcionam e muito, e a obra se manifesta quase sem propósito fora errar onde muito a arte já acertou. Além de ter desperdiçado o potencial de dar uma nova luz, mais esclarecida talvez, mais em contato com o momento da produção do filme e seu contexto social, histórico e geográfico. Restou, no entanto, apenas uma enferrujada réplica de mau acabada de um ídolo que parece esperar se sustentar meramente pela analogia ao original. Ledo engano.

2 Nota do Crítico 5 1

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