O Cão Preto
A revolta dos animais
Por João Lanari Bo
Festival de Cannes 2024
“O Cão Preto”, longa que o chinês Guan Hu completou em 2024, é uma ambiciosa alegoria da China moderna, utilizando uma linguagem que poderia ser classificada de realismo fantástico. Classificar é sempre redutor, burocrático, mas é possível pensar, como principal característica do filme, a inserção de acontecimentos mágicos em cenários reais e cotidianos. Por comodismo usa-se realismo fantástico: mas funciona para adentrarmos o imaginário desse relato surpreendente e competente. Fazer algo em que animais – sobretudo cachorros, mas não apenas – atuam como protagonistas, individual e coletivamente, não é pouca coisa.
Tudo isso tendo como pano-de-fundo as rápidas e polpudas transformações por que tem passado essa imensa nação, um país seminal, como se costuma dizer quando alguém quer demonstrar uma erudição passageira – a China. São mais de 4 mil anos de história, com altos e baixos, para chegar onde chegou: um player incontornável da cena mundial. No passado recente, fins do século 20 e começo do atual, um dos ápices dessas mudanças é a urbanização. Em 1990 viviam em cidades cerca de 26 % da população chinesa: em fins de 2014, esse percentual subiu para quase 55 %, ou seja, mais de 700 milhões de pessoas foram viver em cidades. Diante desses números, não é difícil imaginar a ansiedade latente na sociedade em relação à rapidez do processo de urbanização, com profundas mudanças sociais, econômicas e psicológicas. Em “O Cão Preto”, atravessam o cenário escavadeiras, demolições, realocação de moradores – paira na atmosfera a ideia de progresso, para o bem e para o mal, da paisagem física.
O galã taiwanês Eddie Peng interpreta um ex-astro do rock e ex-motociclista de manobras arriscadas, de poucas palavras e cabeça raspada, chamado Lang. Volta a cidade natal depois de temporada na prisão, por homicídio culposo — para uns é herói, para outros é odiado. Tudo é empoeirado, espaços amplos desenham-se no horizonte, o ano é 2008 e estamos nos preparativos para as Olimpíadas de Pequim de 2008 – olimpíadas modernas são, também, vultosas operações de marketing. O deserto de Gobi fica a um passo de Chixia, onde Lang e o cão preto se cruzam. O cão tem aparência de galgo, é perseguido por tenazes capangas em nome da limpeza canina – o chefe da gangue é ninguém outro que Jia Zhangke, companheiro de geração de Guan Hu, a sexta do cinema chinês.
É na relação que estabelece entre Lang e o cão preto que se organiza a narrativa – o cão é um personagem, informa o diretor, que implica em dizer que sua personalidade foi construída para o drama. Entra em cena o fantástico: além da humanização do cão, eclipse solar, cobras venenosas à solta e animais perdidos saindo do zoológico decadente da cidade se apresentam à jornada de Lang. Para agravar o quadro, o criador das cobras que fogem, conhecido por Butcher Hu, o responsabiliza pela morte de seu sobrinho e está sedento por vingança. O cão – forte e determinado, supostamente raivoso – oferece ao ex-presidiário um caminho para redescobrir sua identidade. Logo, o vínculo torna-se profundo, duas almas solitárias formando um relacionamento tocante.
Passa um circo pela cidade e Lang se aproxima de uma das estrelas – com o beneplácito do cão. Seu pai, frustrado e bebendo em demasia, vai para o hospital – e o cão se solidariza. “O Cão Preto” singulariza reações do (meio) galgo como se fora um parceiro humano de Lang – obrigando o espectador a rever seu olhar em relação aos animais. Ou ainda, obrigando-o a um ponto de vista do animal em relação aos humanos, algo que pode ser aproximado da visão que os indígenas ameríndios tem dessa relação. Os animais, ao se defrontarem com humanos, consideram-se eles mesmos humanos, e veem a humanidade como animais.
Das cobras aos tigres, do coelho ao cão, os animais são o destaque desse filme original e instigante. Logo na sequência inicial uma horda de cachorros dos mais variados tamanhos e cores descem o vale como se fugindo de um apocalipse – a China moderna? – levando o micro-ônibus onde viaja Lang a capotar. Não só cachorros individuais, mas a coletividade canina se expressa em “O Cão Preto”.
Um filme de visuais amplos, abertos. Na trilha sonora, Pink Floyd à vontade – Guo Han, entusiasta ouvinte do célebre The Wall, escreveu uma longa carta para o grupo, explicando o que podia do filme (a história original é dele) e perguntando sobre os direitos. O fato de eles terem concordado em ceder foi surpreendente, mas tomei isso como sinal de confiança em mim, disse em entrevista.