Curta Paranagua 2024

O Barato de Iacanga

Tolerância em terra de chibata

Por Victor Faverin

Netflix

O Barato de Iacanga

Em fevereiro de 1970, Janis Joplin foi expulsa do hotel mais famoso do Brasil após nadar nua na piscina do Copacabana Palace. A artista norte-americana imaginava estar em um país sem repressões e filtros, onde espíritos livres apreciavam sem pudores, culpa, relógio ou calendário a beleza tropical de praias e paisagens. Não poderia estar mais enganada. A ousadia da cantora em terras tupiniquins, no entanto, encontraria sentido apenas cinco anos depois de sua morte, quando em 1975 o jovem paulista Antônio Checchin Júnior, o Leivinha, teve o ímpeto de criar na fazenda da família o Festival de Águas Claras, na cidade de Iacanga, interior de São Paulo. Essa é a história contada por “O Barato de Iacanga”, longa-metragem-documentário de estreia do diretor Thiago Mattar, disponível na plataforma de streaming Netflix.

Com narrativa didática, o filme preocupa-se em reapresentar o evento – inicialmente idealizado à imagem e semelhança de Woodstock – ao público que se lembra do furor dos dias de muita música e hippies pelados, bem como a mostrá-lo a quem só conhecia histórias distantes e contraditórias e também revelá-lo aos mais jovens, que dificilmente já ouviram notícias sobre a especial ocasião. As falas saudosas e apaixonadas de todos os envolvidos no festival servem, ainda, como intenso exercício de imaginação, haja vista a dificuldade de entender como dias regados à psicodelia e melodias com letras de protesto tiveram espaço e foram apreciados a céu aberto durante a Ditadura Militar, um dos períodos mais sombrios da história brasileira.

Um desses alvos, o movimento hippie, símbolo de uma resposta alternativa e pacífica à luta armada contra o poder vigente, abraçou a ideia e a espalhou pelos quatro ventos. Em “O Barato de Iacanga”, cabeludos e barbudos – tão distintos da imagem de empecilhos do progresso retratada em “Era uma vez em… Hollywood”, de Quentin Tarantino – personificavam um microcosmo de tolerância e amor ao próximo em um Brasil submerso em austeridade. Enquanto a primeira edição do festival exaltou o rock n’ roll com bandas recém-formadas, vigor e improviso, a segunda, seis anos após, se concentrou em levar brasilidade ao palco em uma tentativa de mostrar às autoridades e aos críticos que, embora universal, a música apresentada tinha o objetivo de tocar cada recôncavo do país e a seu povo pertencia. Cantores renomados que já tinham plateia cativa se desbancavam de seus nichos para atender a uma audiência que usava a própria arte e a do outro como escudo.

Estimulados por esse sucesso, Leivinha e sua trupe não se acomodaram. Tinham plena consciência de que precisavam superar os anos anteriores e em 1983 impuseram a si próprios um desafio: João Gilberto. À época, o excêntrico e recluso artista já recusava variados convites para apresentações, mas cedeu e, logo após, declarou ter sido essa a sua maior experiência nos palcos. É curioso, portanto, que o Festival de Águas Claras, personificação do grito e potência da Tropicália, tenha encontrado no criador da Bossa Nova, movimento caracterizado pela suavidade de letras e melodias cantadas como um sussurro, o seu ponto mais alto. O diretor de “O Barato de Iacanga” parece inquieto em buscar uma resposta: como o espírito desbravador do idealizador do espetáculo não o alçou ao patamar de marca própria, de grife, tal como Roberto Medina e seu Rock in Rio.

A resposta, apesar de direta e incisiva, não nega ao espectador o lamento por se ver privado de um acontecimento genuíno que poderia continuar a existir até os dias de hoje. Afinal, o público da fazenda de Iacanga seria incapaz de agredir intencionalmente um artista que não fosse de sua preferência, a exemplo do que a plateia do megaevento carioca, ansiosos pela apresentação do Guns n’ Roses, fez com Carlinhos Brown em 2001. “O Barato de Iacanga”, em pinceladas e de forma orgânica, remete o telespectador a uma viagem no tempo e escancara, ainda que em curto frame, como a lucidez, clareza e força de Gonzaguinha fazem falta nos dias de hoje. Ao mesmo tempo, o filme serve de lembrete ao fato das peculiaridades do experimentalismo de Hermeto Pascoal não terem mais o holofote de antes.

Thiago Mattar, em sua primeira experiência como diretor, trouxe à tona a história de um festival obscuro, já que poucas pessoas têm conhecimento de sua existência, mas que marcou época a sua maneira. A construção da narrativa obedece a um passo a passo fortemente delimitado de início, meio e fim – ou criação, apogeu e ruína – mas sobretudo traz o incômodo aviso de que tudo o que um dia esteve, não é mais e nem vai ser, para o bem ou para o mal.

4 Nota do Crítico 5 1

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