O Barato de Iacanga
Tolerância em terra de chibata
Por Victor Faverin
Netflix
Em fevereiro de 1970, Janis Joplin foi expulsa do hotel mais famoso do Brasil após nadar nua na piscina do Copacabana Palace. A artista norte-americana imaginava estar em um país sem repressões e filtros, onde espíritos livres apreciavam sem pudores, culpa, relógio ou calendário a beleza tropical de praias e paisagens. Não poderia estar mais enganada. A ousadia da cantora em terras tupiniquins, no entanto, encontraria sentido apenas cinco anos depois de sua morte, quando em 1975 o jovem paulista Antônio Checchin Júnior, o Leivinha, teve o ímpeto de criar na fazenda da família o Festival de Águas Claras, na cidade de Iacanga, interior de São Paulo. Essa é a história contada por “O Barato de Iacanga”, longa-metragem-documentário de estreia do diretor Thiago Mattar, disponível na plataforma de streaming Netflix.
Com narrativa didática, o filme preocupa-se em reapresentar o evento – inicialmente idealizado à imagem e semelhança de Woodstock – ao público que se lembra do furor dos dias de muita música e hippies pelados, bem como a mostrá-lo a quem só conhecia histórias distantes e contraditórias e também revelá-lo aos mais jovens, que dificilmente já ouviram notícias sobre a especial ocasião. As falas saudosas e apaixonadas de todos os envolvidos no festival servem, ainda, como intenso exercício de imaginação, haja vista a dificuldade de entender como dias regados à psicodelia e melodias com letras de protesto tiveram espaço e foram apreciados a céu aberto durante a Ditadura Militar, um dos períodos mais sombrios da história brasileira.
Um desses alvos, o movimento hippie, símbolo de uma resposta alternativa e pacífica à luta armada contra o poder vigente, abraçou a ideia e a espalhou pelos quatro ventos. Em “O Barato de Iacanga”, cabeludos e barbudos – tão distintos da imagem de empecilhos do progresso retratada em “Era uma vez em… Hollywood”, de Quentin Tarantino – personificavam um microcosmo de tolerância e amor ao próximo em um Brasil submerso em austeridade. Enquanto a primeira edição do festival exaltou o rock n’ roll com bandas recém-formadas, vigor e improviso, a segunda, seis anos após, se concentrou em levar brasilidade ao palco em uma tentativa de mostrar às autoridades e aos críticos que, embora universal, a música apresentada tinha o objetivo de tocar cada recôncavo do país e a seu povo pertencia. Cantores renomados que já tinham plateia cativa se desbancavam de seus nichos para atender a uma audiência que usava a própria arte e a do outro como escudo.
Estimulados por esse sucesso, Leivinha e sua trupe não se acomodaram. Tinham plena consciência de que precisavam superar os anos anteriores e em 1983 impuseram a si próprios um desafio: João Gilberto. À época, o excêntrico e recluso artista já recusava variados convites para apresentações, mas cedeu e, logo após, declarou ter sido essa a sua maior experiência nos palcos. É curioso, portanto, que o Festival de Águas Claras, personificação do grito e potência da Tropicália, tenha encontrado no criador da Bossa Nova, movimento caracterizado pela suavidade de letras e melodias cantadas como um sussurro, o seu ponto mais alto. O diretor de “O Barato de Iacanga” parece inquieto em buscar uma resposta: como o espírito desbravador do idealizador do espetáculo não o alçou ao patamar de marca própria, de grife, tal como Roberto Medina e seu Rock in Rio.
A resposta, apesar de direta e incisiva, não nega ao espectador o lamento por se ver privado de um acontecimento genuíno que poderia continuar a existir até os dias de hoje. Afinal, o público da fazenda de Iacanga seria incapaz de agredir intencionalmente um artista que não fosse de sua preferência, a exemplo do que a plateia do megaevento carioca, ansiosos pela apresentação do Guns n’ Roses, fez com Carlinhos Brown em 2001. “O Barato de Iacanga”, em pinceladas e de forma orgânica, remete o telespectador a uma viagem no tempo e escancara, ainda que em curto frame, como a lucidez, clareza e força de Gonzaguinha fazem falta nos dias de hoje. Ao mesmo tempo, o filme serve de lembrete ao fato das peculiaridades do experimentalismo de Hermeto Pascoal não terem mais o holofote de antes.
Thiago Mattar, em sua primeira experiência como diretor, trouxe à tona a história de um festival obscuro, já que poucas pessoas têm conhecimento de sua existência, mas que marcou época a sua maneira. A construção da narrativa obedece a um passo a passo fortemente delimitado de início, meio e fim – ou criação, apogeu e ruína – mas sobretudo traz o incômodo aviso de que tudo o que um dia esteve, não é mais e nem vai ser, para o bem ou para o mal.