Curta Paranagua 2024

O Alecrim e o Sonho

Sonhos do passado, presente de desafios

Por Pedro Sales

O Alecrim e o Sonho

“Tô com uma dorzinha na coluna e no pescoço, mas ainda chamam isso de melhor idade. É foda, né?”

A velhice culturalmente, pelo menos na noção ocidental, representa quase sempre fragilidade física e mental. Sendo essa uma fase de maiores cuidados, é natural o choque diante das constantes notícias de maus tratos aos idosos. A representatividade idosa em tela, no entanto, é bem escassa se comparada ao restante das produções. Outro problema é que os personagens retratados estão majoritariamente associados a narrativas super densas, como em “Amor” (2012), de Michael Haneke. Falta, portanto, um otimismo frente às obras com idosos. Em “O Alecrim e o Sonho“, o diretor Valério Fonseca propõe uma trama que se envereda pelo dramático, desde relações familiares a perseguições, mas repousa muitas vezes em um tom sublime, que mescla sonhos, humor e intimismo com o protagonista.

Seu Vicente (Fernando Teixeira) é um idoso que mora sozinho no bairro do Alecrim, em Natal (RN). A rotina do professor aposentado não possui nada de especial. Ele acorda, vai à padaria, anda de ônibus e até leva seu passarinho para passear, mesmo que ele esteja dentro de uma gaiola. Para completar o bingo do imaginário popular das atividades da vida idosa, só faltou ao personagem ir à lotérica. Dessa forma, ao estabelecer a rotina e o cotidiano de Vicente, o cineasta estabelece um tom introspectivo e intimista diante do protagonista. Dentro do apartamento, o espectador penetra a vida do idoso, torna-se sua companhia na pequena copa, assiste a ele tomar café da manhã e remédios para começar o dia. Ou seja, o realismo se manifesta a partir da decisão de colocar o cotidiano em tela.

O tom realista de “O Alecrim e o Sonho“, contudo, não é o único. A questão onírica se materializa enquanto recurso escapista da realidade. Por mais que perturbações noturnas inviabilizem o sono pleno, em uma cômica repetição dos barulhos, Vicente acessa seu passado por meio dos sonhos. Sua esposa falecida Joana (Zezita Matos) reaparece e dialoga com ele, figuras em pernas de pau também o seguem, e a trilha durante esses momentos reforça o caráter lúdico e circense dos sonhos. Essas cenas são sensíveis, delicadas, mas ainda sim tristes, pois demonstram o que ele tem mais saudade, sua esposa. Nessa questão entre realidade e sonhos, o filme se associa ainda a “Morangos Silvestres” (1957), de Bergman – inclusive Fonseca não nega a influência quando, em um “tributo”, Vicente assiste a este longa. Se por um lado os sonhos escapistas são sensíveis e tristes, o humor e irreverência são onipresentes quando o protagonista faz seu caminho diário na frente da loja “Oswaldo Atraente”. Como se esse espaço do caminho fosse uma forma de alegrá-lo, mesmo quando Vicente quer fugir do locutor.

Uma constante na obra são os deslocamentos. Vicente, filmado geralmente em planos gerais, vai para muitos lugares, inclusive a casa de sua filha, mas com insucesso. Quando o longa se atém aos dramas, a questão cotidiana é posta em segundo plano. A filha é distante e a neta vidrada em tecnologia. O encontro entre os três, às vésperas do Natal, demonstra que apesar do esforço de Vicente pelo contato, o distanciamento parece partir da filha que é “muito ocupada”. Assim, com a fragilidade familiar, ele desenvolve outros laços: o porteiro, a diarista Maria (Valdinéia Soriano) e o Baixinho do Pandeiro. Além do drama familiar, o filme se encaminha para um discurso político acerca da violência policial (ou miliciana) contra corpos negros. Por mais que a validade desta insatisfação e a necessidade de representação no audiovisual sejam inegáveis, este é um momento que soa deslocado em relação ao restante da trama e com um desenlace simplificado. O embate com o padeiro, por outro lado, passa por uma construção dramática muito mais polida. A gradação dos insultos do homem representam de uma maneira exagerada, embora não caricata, a realidade dos maus tratos aos idosos. “Vai trabalhar, Vicente. Tá quebrando o Brasil”, vocifera o homem, inferindo que nem o descanso é permitido aos mais velhos.

O Alecrim e o Sonho” é um filme que se destaca já em sua premissa. O protagonismo idoso, sobretudo em uma narrativa agridoce (mais doce que amarga), por si só é raridade. A presença de Fernando Teixeira e a forma que incorpora trejeitos e expressões contribui bastante para a identificação com o personagem, assim como a condução cuidadosa de Valério Fonseca que estabelece a rotina e os deslocamentos. Mesmo monossilábico e às vezes rabugento, Vicente possui uma bondade tangível, ele quer ajudar os outros, reforçar seu legado de ensinamentos em classe, mas agora de outro jeito, amparando uma mãe que enterra o filho ou apenas contribuindo com a “caixinha”. O maior mérito da direção de Fonseca é a construção de uma dialética entre a abordagem naturalista cotidiana – que serve como apresentação -, o caráter dramático que o longa adquire ao longo da rodagem e até catártico com os sobreviventes de acidentes com raios. Ainda assim, o cineasta não abdica dos momentos graciosos e de humor, como quando ele dança com os pãezinhos, à la Chaplin em “Em Busca do Ouro” (1925), ou dançando com Maria, aproveitando o presente mas nunca se esquecendo do passado que vem em sonho.

 

3 Nota do Crítico 5 1

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