Mostra Um Curta Por Dia - Repescagem 2025 - Dezembro

Nouvelle Vague

New York Herald Tribune, New York Herald Tribune

Por João Lanari Bo

Festival de Cannes 2025

Nouvelle Vague

Como é possível um filme se chamar simplesmente “Nouvelle Vague”, nome de um movimento de jovens cineastas no final dos anos de 1950 na França? Pois foi a sacada esperta de Richard Linklater (de “Assassino por acaso”) para filmar um making of dramatizado sobre o clássico “Acossado”, que Jean-Luc Godard rodou em 1960. Nessa era de compartilhamentos fugazes via redes sociais em que vivemos, alguém compartilhar uma devoção por um filme e um cineasta é algo a ser exaltado – mesmo que o próprio homenageado, conhecido pelo seu mau humor, provavelmente repudiaria a ideia.

Foi o que Godard fez quando viu-se na tela em “O Formidável”, de 2017, que relata bastidores do seu “A Chinesa”, de 1967 – uma ideia estúpida, vociferou na ocasião. À revelia do mestre – palavra que seria imediatamente rechaçada por ele – resta aos aficcionados desse modo de filmar inventado pelo franco-suíço, em sintonia com os companheiros de geração, usufruir dos bons momentos exalados pelo ingênuo, porém sincero filme-homenagem de Linklater. Uma geração e tanto: estima-se que entre 1958 e 1962 algo como 170 cineastas estrearam em longa-metragem na França, segundo lista compilada por ninguém outro que François Truffaut! Um número estonteante, dadas as condições de produção, o cinema era analógico, filmar, revelar, montar, transcrever o som…

E foi em 1958 que o jornalista Pierre Billard pressentiu o fenômeno, o qual batizou de nouvelle vague. Como numa narrativa mitológica, “Nouvelle Vague” nos apresenta os personagens de maneira didática, começando por Godard e seus óculos escuros (Guillaume Marbeck), François Truffaut (Adrien Rouyard), Claude Chabrol (Antoine Besson), Jacques Rivette (Jonas Marmy), Eric Rohmer (Côme Thieulin), além de figuras consolidadas como Jean Cocteau (Jean-Jacques Le Vessier), que profere a célebre sentença  arte não é um passatempo, mas um sacerdócio – contraposta logo em seguida por Godard, frasista contumaz, com a igualmente célebre para um filme, tudo que você precisa é de uma garota e uma arma.

É nesse clima que flui a construção do mito, com as decisões abruptas e geniais que levaram à realização de “Acossado”, dos entreveros com o impagável produtor George “Beau Beau” Beauregard (Bruno Dreyfürst), com direito a briga entre os dois com rolamentos no chão do café, aos diálogos com Truffaut no metrô, fundamentais – foi o amigo que rascunhou o argumento do primeiro longa de Godard, baseado em um true crime de um homem durão que atira em um policial e conquista uma namorada americana. Como os jovens tinham extensa cultura cinematográfica, absorvida na Cinemateca de Henri Langlois e na convivência com Andre Bazin no Cahiers du Cinema, o argumento de Truffaut – filmado com improvisação diária de cenas e diálogos – tornou-se uma deglutição em alta voltagem, de Roberto Rossellini (Laurent Mothe), que aparece dando uma inspirada e curta palestra no Cahiers, a Samuel Fuller, referência para a sequência final da corrida (des)dramatizada de Belmondo no final do filme.

Jean-Paul Belmondo (Aubry Dullin) é central em “Nouvelle Vague”, boxeur e brincalhão, assim como Jean Seberg (Zoey Deutch), a star americana que, traumatizada, acabara de atuar em “Bom dia, tristeza”, de Otto Preminger – e logo pula para o Champs Elysées, em Paris, vendendo “New York Herald Tribune”. A relação que se instala no trio, Belmondo, Seberg e Godard, é responsável pelos melhores momentos do filme de Linklater. Em “Acossado” estava em jogo uma busca desesperada de amor e romance, com a certeza de que os dias de um assassino de policiais estão contados: Belmondo vivia essa vertigem numa premência de tempo, que destilava um ritmo de montagem inovador, para dizer o mínimo, enquanto Seberg parte da indiferença para a adesão ao que se passava – ou seja, uma mise-en-scène totalmente fora dos padrões convencionais.

E o árbitro desse pandemônio, Jean-Luc, alternando ausências de insegurança com decupagens fantásticas, mau humor com apelos afetivos, dirigindo a equipe em locações externas e internas, improvisando triciclos para rodar travellings, e proferindo citações literárias e filosóficas nos intervalos. O personagem Godard é quase uma caricatura em “Nouvelle Vague”.

Destaque também para coadjuvantes do mito, com o brilhante Raoul Coutard (Matthieu Penchinat), cameraman com experiência na cobertura de guerras, escolha inspirada para o cinema de guerrilha godardiano. E a Suzanne Schiffman (Jodie Ruth-Forest), fiel colaboradora e presente em inúmeros filmes do grupo.

Entre tragadas de cigarro, Godard montou um caos produtivo único na história do cinema – e realizou um filme divisor de águas.

4 Nota do Crítico 5 1

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