Curta Paranagua 2024

Notre Dame

Um tapa na cara do espectador

Por Fabricio Duque

Notre Dame

Não se sabe mais se o mundo mudou tanto que perdeu lugar à ingenuidade ou se há no momento uma grande quantidade de importações saudosistas de estéticas neo-vanguardistas do passado. Talvez o novo longa-metragem “Notre Dame” da realizadora Valérie Donzelli (de “A Guerra Está Declarada”, “Marguerite & Julien: Um Amor Proibido”; e também atriz-protagonista deste), exibido no Festival de Locarno e no Festival Varilux de Cinema Francês 2020, consiga a proeza de condensar, ao mesmo tempo, os dois antagônicos questionamentos anteriores ao apresentar uma comédia “radiante”, exposta, demasiadamente, com luz, radiação, idiossincrasias e elementos conceituais.

“Notre Dame” é uma compilação de gêneros cinematográficos franceses, da comédia de Jacques Tati (a teatralidade) ao musical de Jacques Demy (as cores vívidas e saturadas aos anos sessenta), passando pela Nouvelle Vague de François Truffaut e Jean-Luc Godard, sem esquecer da ressignificação modernizada de Christophe Honoré (o escritório de trabalho da protagonista lembra o cenário de “Canções de Amor”). O que em um primeiro momento pode soar como homenagem cinéfila (a música uma crônica-fábula à moda de um comercial de margarina para contrapor as trágicas-sensacionalistas notícias: desemprego, tempestades, inundações, depressão dos parisienses), de fantasia personificada (da ajuda “purpurina” do Universo) e realismo fantástico (liberdades poéticas que quebram a lógica), ao longo do filme percebemos uma seleção de cenas em replicação da inocência de uma época e sem propósito algum.

Maud é uma versão mais adulta e madura de Adèle, de “A Rainha de Copas”, um dos filmes dirigidos por Valérie. Nós somos “convidados” a “viajar” por uma estranheza bagunçada, sem curadoria, de improvisos estabanados-pastelões (só faltou mesmo a torta na cara) e que suplicam cumplicidade ao público para embasar a “fofura” e a “simplicidade” dessa comédia de situações constrangedoras, como a britadeira da obra que, do nada, treme o espaço todo como um terremoto e/ou o “surto” de tapas nos rostos das pessoas. E/ou por momentos soltos, como a questão dos imigrantes. E/ou a questão feminista (“Mãe, por que as mulheres fazem tudo?”). E/ou a experiência “obscenidade do século” inferida pela realidade virtual, comparativa aos elementos fálicos (como o da Torre Eiffel que também sofreu protestos). E/ou um ensaio de quebra moral: uma grávida sem barriga que toma um porre.

Nós percebemos também que após a estética Netflix de ser, “Notre Dame”, por mais gratuito-pretensioso-ingênuo que possa ser, ainda assim pode encontrar o objetivo de ser um filme de arte “diferenciado” dos demais padronizados. Sim, o mundo mudou. E essa evolução parece mais um retrocesso. O longa-metragem é uma lupa de aumento nas manias (loucuras-neuroses permitidas e respeitadas) dos tipos franceses, entre guarda-chuvas ao vento. Há uma atmosfera de infantilidade caseira (que também pode ser uma “estratégia” de se fazer de bobo para enganar os espertos), como se todos se comportassem como crianças perdidas, alheias a sua volta, em processo de conhecimento de mundo. Durante o Natal e com o objetivo de reconstruir Notre Dame, que recentemente pegou fogo e destruiu boa parte do monumento religioso de Paris.

“Notre Dame” também quer ser um filme-livro. Um conto de fadas narrado e conduzido, artifício este para tentar insinuar que toda artificialidade da confusão trincada (tensão sempre no limite da “morte”) é na verdade uma história escrita e reconstituída à tela. Sim, são tantas suposições que nos perdemos no nosso próprio achismo. Cada vez o filme perde mais o tom. Fica mais estabanado. Mais awkward. O que possa ser um querer da descontinuidade da estética Godard de ser, aqui o resultado é outro: distração.

Então, não satisfeita com a quantidade plural de assuntos diversos, Valérie Donzelli evoca o musical (e o cinema mudo) para comprovar que o que assistimos não possui nexo. Pois é, essa descontinuidade, de elipses e encenações-performances, não encontra propósito. Com ou sem Legos. Com ou sem discursos em um julgamento. Com ou sem “Nuvem Rosa” em Paris. Não. Nada. Algum. Talvez o que o filme tenha esquecido é que escolher a estética da Geração Z não só incapacita a imersão, como é destoante e incompatível. Sim, mas alguns rebaterão que este é uma obra inofensiva. Não, meus caros. Pelo contrário. Ao repetir uma ideia e uma estética, todos são influenciados com este novo fazer. Que gerará novos filmes de novos realizadores. Valérie Donzelli está em choque. Nada melhor que a terapia do tapa na cara para acordar (está explícito e lícito no próprio filme aqui).

“Paris tem passado por um período muito difícil desde os ataques de 2015, e agora é como se estivéssemos em um estado permanente de caos. Até parece diferente. A cada cinco minutos, podemos ouvir o som áspero das sirenes da polícia soando. Então, sim, eu queria trazer sua beleza de volta ao primeiro plano, mas sem minimizar sua violência e pobreza, incluindo todas as pessoas que têm que viver e dormir nas ruas …”, finaliza a realizadora.

1 Nota do Crítico 5 1

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