Nós Somos o Amanhã
Quem canta seus males espanta?
Por Pedro Sales
Durante o Festival de Brasília 2023
“Nós Somos o Amanhã“, integrante da Mostra Competitiva Nacional do 56º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, é um musical queer infanto-juvenil. A proposta em si é bastante ousada, uma vez que a associação destes diferentes gêneros cinematográficos não é tarefa simples. O diretor Lufe Steffen, que também é o protagonista do longa, evidencia desde o início que se trata de um projeto pessoal, para “fazer as pazes com o passado”. Para exorcizar os traumas de infância advindos do bullying nos anos 80, opta-se por uma abordagem lúdica, inventiva, autoconsciente de seus exageros e com canções, no melhor estilo “quem canta seus males espanta”. Apesar das boas intenções e da clara carga pessoal na obra, o filme apresenta muitos problemas estruturais que passam da infantilização ao didatismo excessivo. Talvez, estes dois pontos nem sejam os mais frágeis. A dificuldade em dosar a seriedade com uma proposta cômica, por outro lado, é o fator que mais impede o longa de funcionar.
Rodriguinho (Lufe Steffen) é um menino de 12 anos. Vivendo nos anos 80, seu jeito “diferente” em relação aos outros meninos, como não querer jogar futebol, faz com que ele sofra bullying. “Chute de bicha”, chamam os garotos quando o protagonista se prepara para bater um pênalti. Além dele, outros personagens também lidam com a perseguição dos valentões. Maribel (Érica Ribeiro) sofre racismo, Alice (Alicia Anjos), transfobia, outro sofre perseguição por ser “nerd” e uma última é chamada de gorda. Nesse sentido, a obra é extremamente formulaica na disposição dos personagens e dos arquétipos: os excluídos, os malvados e as patricinhas. Muitas vezes, então, o filme pende ao exagero nas atuações e é exatamente isso que o enfraquece.
A perseguição sofrida pelo grupo dos “excluídos”, por exemplo, é extremamente caricata, obviamente de forma intencional. No entanto, é um tiro que sai pela culatra. A encenação quase cartunesca e as situações de bullying, que reforçam cenas vistas pelo público a esmo, esvaziam o peso e a seriedade dos assuntos. É como se o público não conseguisse levar a sério os problemas dos personagens porque eles partem de um lugar comum amplamente martelado no audiovisual. Na realidade, poucos são os momentos em que o diretor de fato consegue evocar os sentimentos pretendidos, como na sequência musical da Bruxa Boa do Oeste (Silvero Pereira) cantando Maria Bethânia, pois a letra da canção passa a comunicar com as dúvidas que o personagem nutre pela sexualidade e, eventualmente, pela felicidade no futuro.
Outro problema de “Nós Somos o Amanhã” é a infantilização. O caráter lúdico está desde o início com ilustrações e objetos cênicos que remetem à infância dos anos 80, relógios coloridos, canetas de várias cores. Ainda sim há uma estranheza enorme naqueles adultos se comportando como crianças. Nesse sentido, tem um pouco de “O Diário de Tati”, mas também dos filmes do youtuber Luccas Neto, igualmente didáticos e autoexplicativos, o que deturpa a obra do tom infantil para o infantiloide. Lufe Steffen opta pela quebra da quarta parede para estabelecer o diálogo com o espectador e querer apontar lições de moral. O problema, porém, é a repetitividade do recurso, que se torna muito cansativo e didático, apenas em uma cena a quebra funciona efetivamente, com efeito cômico. Além disso, também existem narrações em off que compartilham o processo criativo do filme, reforçando a autoconsciência da obra.
Esteticamente, o longa é extremamente arrojado. Em primeiro lugar por abraçar o musical, gênero que muitos detestam e não assistem. As sequências tem um quê de brega e camp, como define Susan Sontag: “predileção pelo inatural, pelo artifício e pelo exagero”. A intencionalidade é exatamente essa: emular toda a breguice e exagero dos anos 80, com chroma key e figurinos toscos. As canções de Xuxa, Balão Mágico e Rita Lee embalam, então, esse revival oitentista. A mise-en-scène também possui ousadia formal. Os cenários pretos, esvaziados cenicamente apenas com atores e objetos de cena, dão sensação de suspensão como se fosse uma memória, daquelas que não se lembra do lugar, mas dos acontecimentos. Outro ponto de destaque da obra, além das sequências musicais assumidamente toscas, é a presença de Cláudia Ohana como a professora Clara Celeste, a partir do momento que ela se torna uma espécie de fada-madrinha dos excluídos misturada com o professor John Keating, personagem de Robin Williams em “Sociedade dos Poetas Mortos”.
“Nós Somos o Amanhã” é um longa autoconsciente do seu desafio e da certeza de não ser unanimidade. As muitas fragilidades narrativas que acompanham a obra impedem que a questão emotiva seja melhor desenvolvida. O tom infantiloide adotado, o excesso de didatismo e a representação do problema do bullying partindo de um lugar comum extremamente caricato são fatores que distanciam o espectador da proposta do diretor de “fazer as pazes com o passado”. Por outro lado, as sequências musicais funcionam, apesar da incessante plaquinha reafirmando se tratar de um musical, pois tocam na nostalgia da infância oitentista – referenciando os artistas infantis da época, com direito à nave do Xou da Xuxa – e são bem encenadas, principalmente a de Clara Celeste e os alunos com guarda-chuvas. É também uma obra extremamente criativa formalmente, que transita bem pela economia cenográfica e pelo exagero. Mas, infelizmente, é irregular narrativamente e muitas vezes vergonhoso de tão simplista.