Noel Rosa – Um Espírito Circulante
O bairro e seu compositor
Por Vitor Velloso
Festival do Rio 2024
O novo documentário de Joana Nin, “Noel Rosa, Um Espírito Circulante”, é uma tentativa de abordar a trajetória e o legado do lendário músico carioca de Vila Isabel, que morreu aos 26 anos de idade, deixando mais de 200 composições. O filme se empenha em compreender as diferentes camadas presentes no bairro de Vila Isabel e arredores, o que representa um esforço importante para alocar e contextualizar a região por onde o personagem circulava e fez história. No entanto, acaba desviando o foco de seu próprio objeto de interesse durante esse exercício.
A ambientação é eficiente e necessária, porém a montagem, assinada por Rená Tardin e Lucas Cesario Pereira, perde a cadência em determinados momentos e se debruça excessivamente — ou de forma desordenada — sobre Vila Isabel, deixando o protagonista em segundo plano. Esse pequeno descompasso é suficiente para suspender o envolvimento do espectador em certos trechos, criando a sensação de um projeto com rumo pouco definido, até mesmo sem estrutura. Contudo, “Noel Rosa, Um Espírito Circulante” apresenta outros méritos, especialmente na forma como relaciona parte da vivência de Noel com sua vida boêmia, trazendo alguns depoimentos enriquecedores — embora outros nem tanto. Esse pêndulo se mantém durante quase todo o documentário, oscilando entre altos e baixos, fragilidades e pontos fortes. De certa forma, essa tensão quase contraditória é o que confere certo charme ao filme. Aliás, algumas entrevistas sobre o vínculo indissociável entre Vila Isabel e Noel são fascinantes, permitindo uma profundidade dialética e quase metafísica — embora também haja certo desequilíbrio nesse aspecto.
Dessa forma, enquanto algumas investidas em direção a um didatismo pragmático funcionam como apresentação ao grande público, outras evidenciam uma falta de perspectiva no desenvolvimento, revelando diversas fragilidades do documentário. Um exemplo é parte do segmento “Fale com Noel”, que procura explicitar o caráter vivo do bairro, mas surge como um ponto desnecessário ou ineficaz, pois não adiciona elementos novos e compromete o ritmo que vinha sendo construído. Não por acaso, há inserções de animação que tentam dinamizar o projeto — às vezes saltando entre músicas, às vezes com algum apelo contextual — mas que, em geral, não contribuem de forma significativa para o filme, soando mais como um escapismo formal e estético em meio ao desenvolvimento.
“Noel Rosa, Um Espírito Circulante” enfrenta dificuldades com a escassez de material de arquivo e recorre a algumas decisões questionáveis, como a inclusão de entrevistas pouco agregadoras e/ou diletantes, pequenas fugas estéticas e diversas tentativas de correlacionar as influências de Noel com artistas contemporâneos. Essas correlações, no entanto, surgem quase sempre marcadas por uma superficialidade generalizada quanto à música, às letras e aos diferentes contextos. Aliás, uma das melhores falas do documentário — sobre os ciclos de brancos e negros que Noel frequentava — aparece quase ao fim da projeção e poderia ter sido explorada com mais profundidade ou, ao menos, com maior atenção, já que funciona como uma conclusão que encerra o debate e as possibilidades de se pensar os diferentes espaços sociais frequentados por nosso protagonista.
Além disso, a ausência de uma maior exploração crítica do contexto histórico-social em que Noel viveu enfraquece parte da proposta. A década de 1930 no Brasil, marcada por transformações políticas e culturais intensas, aparece apenas como pano de fundo e não como um fator ativo que molda o personagem e sua obra.
Entre tantas irregularidades, “Noel Rosa, Um Espírito Circulante” pode ser relativamente frustrante para o espectador, especialmente pela dificuldade de conseguir se inserir nessa estrutura tão fragmentada por diferentes referenciais. Essas pequenas quedas de ritmo e desarmonia podem causar desconforto, ainda que não seja unânime. Além disso, a falta de um aprofundamento nas questões musicais também chama a atenção. Contudo, para os moradores de Vila Isabel, será um prato cheio encontrar um documentário que divide sua atenção entre dois protagonistas, o bairro e Noel, ainda que de forma desordenada. Por fim, mesmo com suas irregularidades, o filme não deixa de ser uma contribuição válida para a memória da música de Noel. Seu valor reside sobretudo na tentativa de reinscrever Noel no imaginário contemporâneo, ainda que a execução, por vezes, soe pragmática e formulaica.