No One’s With Calves
Isolada e cercada
Por Vitor Velloso
Durante o Festival de Locarno 2021
Saskia Rosendahl levou o merecido prêmio de melhor atriz na Concorso Cineasti del Presente por seu trabalho em “No One’s With Calves”, de Sabrina Sarabi. O filme, baseado em um livro homônimo, desafia o espectador em uma série de situações degradantes, onde a protagonista é oprimida constantemente em um universo misógino. Colocada constantemente como culpada das situações, tratada como lixo subalterno pelo namorado, odiada pelo sogro, cuidando do pai alcoólatra, sobra pouco tempo para Christin ser… Christin. Apesar da responsabilidade diante do mundo ao seu redor, a jovem de 24 anos é impedida de sonhar ou desejar algo melhor para si. Quando tenta extravasar, algo a puxa para a realidade.
O direito de almejar surge com um flerte de um homem que está ali de passagem, mas o romance não é exatamente uma questão concreta. Aos poucos o longa vai assumindo um caráter degradante, sombrio, de poucas vibrações e muitas opressões, todos com quem se importa não permanecem, apenas os demônios de sua vida. Por essa razão, assistir “No One’s With Calves” é uma experiência exaustiva que constrói lentamente uma via de saída desse ciclo vicioso onde os animais são mais queridos que os homens. É uma obra que parte dessa representação caótica para estruturar um drama que chega como um rolo compressor, especialmente pela interpretação de Saskia Rosendahl, e é capaz de provocar diretamente o espectador sem ceder a dispositivos baratos para isso. A construção é feita em um naturalismo que explora as paisagens a favor desse deslocamento social. Um recorte de espaço que até possui alguns fetiches explícitos por essa transa da unidade política do lugar, mas que consegue consolidar o lento ritmo sem tornar-se tedioso ou excessivamente prosaico.
A linguagem cria uma diretriz consciente de subtrair os personagens por ações e os espaços para suas próprias funções. É uma estratégia que funciona pela repetição, o álcool é um gatilho para tentar se manter, o refrigerante é o apego da sobriedade, tanto a cozinha quanto o quarto vão explicitando as mudanças na própria protagonista, com o seu comportamento tornando-se menos dependente. Apesar da objetiva seguir Christin de perto, nunca sentimos que ela está no centro da imagem, esse tempo esgarçado nos dá a sensação de uma interrupção ou espera por algo. Porém, quando ela passa a tomar as rédeas, a objetiva tem de ser mais ágil, é menos estoica e o carro é essa possibilidade de fuga. O que sustenta sua permanência é essa falta de perspectiva, do sonho. Não faltam motivos para ir embora, mas faltam lugares e pessoas para acolher.
A solidão não é a sina em “No One’s With Calves”, são os homens. Interessante ver que Sabrina Sarabi trabalha mais com ausências que com opressões, é um contraste dramático que funciona de maneira dicotômica, tudo é atordoante. Objetificação em duas vias distintas, o seu corpo e a idealização da mulher que estará ali quando todos precisarem dela, seja para limpar o vômito, transar ou manter as aparências que tudo vai bem no relacionamento. Christin parece ser a única sóbria nesse mundo de violências, onde tudo é passageiro e não existem permanências. Está certo que uma breve retomada do que foi apresentado em Locarno demonstra um certo apreço por esse deslocamento em meio ao continente, uma espécie de “parcela arrasada” da cultura nacional. Mas são as bases materiais da produção que recebem um recorte centralizado dessa personagem que procura um aval permissivo para se retirar e buscar uma vida de verdade.
Saskia Rosendahl é uma motivação e tanta para assistir “No One’s With Calves” mas a experiência não fica para trás do que ela apresenta. É uma obra sólida que tem uma consciência dramática rigorosamente ligada à matéria de seus lugares. Não por acaso essa proposta já é categorizada pela direta na página do filme em Locarno, é uma inversão de base funcional que não termina devendo à tradição do cinema alemão.