No Cemitério do Cinema
O Santo Graal do Cinema Africano
Por Pedro Sales
Durante o Festival Olhar de Cinema 2023
Antes do diretor senegalês Ousmane Sembène se consolidar mundialmente como o principal nome do cinema africano, muitos tomam como ponto inicial do cinema realizado por diretores nascidos no continente o curta-metragem “Afrique-sur-Seine” (1955), da dupla Mamadou Sarr e Paulin Soumanou Vieyra. No entanto, é equivocado pensar nesta obra como pioneira. Aparentemente, em 1953, dois anos antes deste curta citado, foi lançado “Mouramani”, curta-metragem guineense, dirigido por Mamadou Touré. O problema é que ninguém viu esse filme e nem sequer sabe se existe uma cópia dele. O diretor Thierno Souleymane Diallo, munido da esperança de encontrar o Santo Graal do cinema africano e com a benção de sua mãe, se lança em meio a arquivos e antigos cinemas da Guiné para achar esse curta perdido, rodado durante a ocupação francesa, que conta a história de um menino e seu cachorro, ou talvez de um rei antigo. “No Cemitério do Cinema”, portanto, é um documentário metalinguístico que busca a preservação do passado e a manutenção do futuro cinematográfico da África.
Em um lugar onde estudar cinema é visto como “perda de tempo”, Souleymane embarca em uma empreitada ainda mais arrojada que o próprio ato de ser cineasta: resgatar a história do cinema africano. Por onde começar é o primeiro desafio. Ao consultar antigos diretores, professores e funcionários dos velhos cinemas, ele constata a triste realidade que seu povo “não tem a cultura de arquivar”. Nas salas destruídas que ele visita, o cemitério do título se torna plural. Em um contexto que a destruição do arquivo foi deliberada, a memória de um povo é também dilacerada. Dessa forma, as ruínas desses “Cinemas Paradisos” e os rolos de filmes jogados e espalhados pelo chão guardam histórias abandonadas e esquecidas. Não é por acaso que os entrevistados falam com melancolia do tempo em que jovens subiam nas árvores para espiar o cinema, ato que hoje é atualizado com crianças assistindo televisão por entre frestas das paredes de madeiras.
A proposta da direção de Thierno Souleymane em “No Cemitério do Cinema” é exercer um papel quase messiânico diante da arte cinematográfica. O cineasta, então, assume o papel de personagem principal. Montado em um burro e andando descalço, símbolo de protesto contra a realidade e falta de fomento para o cinema guineense, ele vai em uma peregrinação pelo filme perdido. Em cada ambiente onde vai, ele é bem recepcionado, seja na vila ou na metrópole. O diretor imediatamente cria vínculos e conexões com a população tanto por sua busca pelo curta “Mouramani”, cuja própria sinopse possui diferentes versões, quanto pela abertura ao diálogo, se colocar no lugar de escuta. Esses momentos são captados por apenas duas câmeras, a do próprio diretor, usada somente em entrevistas – que demonstra de maneira mais perceptível a textura digital e, consequentemente uma resolução menor – e a principal feita por Leïla ChaÏb.
O discurso de Souleymane é um ativismo contra as várias mortes do cinema, que podem se manifestar na sua restrição enquanto espaço físico, no descaso e falta de preservação das películas como arquivo histórico ou mesmo as novas formas de consumo de filmes que parecem ameaçar a soberania do cinema. Dessa forma, o roteiro constrói variadas pequenas situações em que o cineasta propõe resistência do cinema africano. A exibição a céu aberto para os moradores da vila onde filmou, por exemplo, é um retorno às origens do cinema e, da mesma maneira, ao seu aspecto primordial de experiência coletiva. O exercício dos universitários filmando com câmeras de madeira – ideia emprestada do documentarista Joris Ivens que fez o experimento com estudantes de Cuba – além de propor um aprendizado do direcionamento do olhar, também preconiza o futuro imediato do cinema africano. Assim como o compartilhamento da feitura do documentário, que culmina em um filme-lúdico que as crianças roteirizaram, atuaram e até ajudaram a captar o som. Com esses gestos, o cineasta pretende se colocar como um elo entre o presente e o futuro.
Dessa forma, “No Cemitério do Cinema” se consolida como um filme-manifesto apaixonado, que questiona o passado e dirige um olhar esperançoso para o futuro. Mesmo que o ponto de partida seja a busca pelo curta “Mouramani”, nessas peregrinações do cineasta-desbravador, ele consegue algo tão valioso quanto – ou mais do que – o rolo de filme: reavivar a paixão do cinema nas pessoas. Explorando as histórias antigas das saudades do cinema, ou de uma produção totalmente estatal, em que os filmes eram propaganda, Souleymane brinda o espectador com um mergulho antropológico nas raízes cinematográficas da Guiné. É com esse protesto que seus deslocamentos (interior-centro, Guiné-Europa) adquirem um simbolismo. Se os próprios guineenses não preservam seus filmes, será que os outros farão? Talvez a resposta não seja a esperada, mas o cartaz reafirma a existência de “Mouramani”, e se, de alguma forma os filmes acabam morrendo, que eles ressuscitem por meio da recriação.