Nervos de Aço
Olhando para um passado para ressignificar o presente
Por Julhia Quadros
“Nervos de Aço” (2016), de Maurice Capovilla tem seu roteiro construído em torno da composição musical, com suas passagens pontuadas através de letras de canções de um ensaio do espetáculo homônimo retratado ao longo da obra. Produzido pela Cavideo, o filme explora as relações pessoais de amor, ciúmes e profissionais, em que todos os mundos se fundem e um campo sugere o outro. O filme homenageia Lupicínio Rodrigues, autor das canções interpretadas no espetáculo apresentado, o título é inspirado em uma música, interpretada na primeira sequência do filme, que versa sobre traição, sofrimento amoroso e quebra de expectativas.
A letra e o ensaio da personagem Maria Rosa (Ana Lonardi) vêm como uma alegoria do que ocorre entre ela e Joel (Arrigo Barnabé), diretor do espetáculo com quem se relacionara passara a ter uma relação profissional com ela, dirigindo suas apresentações. Joel não se conforma com o fim do relacionamento entre eles e repreende grosseiramente a cantora ao longo do trabalho a que ela sempre retruca, tendo ou não o apoio dos demais companheiros de equipe. Um momento bastante interessante do filme é a discussão que Maria Rosa tem após pensar sobre e letra da canção que interpretaria, alegado que a personagem fora injustamente acusada de traição e teria ficado entre o marido e o amante. A protagonista defende a mulher retratada e se posiciona contra uma interpretação machista e sem maiores questionamentos, como quem defende Capitu ao discutir Dom Casmurro de Machado de Assis. E, é curiosa a expressão de Joel, quando fica em silêncio e desvia o olhar após a pergunta dela: “quem é essa mulher?”, evidenciando que claramente ele estava projetando na vida profissional e na direção da artista com o relacionamento que tiveram.
Com a fotografia de Lúcio Kodato, “Nervos de Aço” apresenta geralmente planos mais fechados, close-ups ou planos conjunto, o que contribui para a construção do ambiente de intimismo, subjetividade, aflição e individualidade, em que os intérpretes encontram nas canções ecos de seus sentimentos e interpretações para suas angústias. As cores quentes também contribuem para este cenário, a presença do vermelho, ambientes noturnos, que sugerem a boemia, amores, flertes, emoções elevadas ao extremo, sofrimento e o próprio ambiente profissional dos artistas: a noite pelos espetáculos. Ao longo da montagem do musical “Nervos de Aço”, Maria Rosa se envolve com o colega de trabalho Carioca (Pedro Sol), o que piora a tensão ao longo dos ensaios. Este jogo de provocação através de músicas, interpretações e ensaios entre Maria, Joel e Carioca remonta a uma antiga tradição da era do Rádio em que pessoas travavam conflitos _ amorosos ou não _ através de músicas, como o caso de Dalva de Oliveira e Herivelto Martins ou até mesmo a rivalidade musical entre Noel Rosa e Wilson Batista.
Algo muito interessante na construção do roteiro, de Maurice Capovilla é esta metalinguagem da arte. A citação da vida de Lupicínio Rodrigues, autor e poeta presente em ideias ao longo do filme, a representação e a discussão das letras ao passo que os acontecimentos do filme levam a este cenário. Os textos e as personagens interpretadas são questionados bem como a relação entre os envolvidos no espetáculo. Desta forma, a obra é uma homenagem à cultura musical e aos tipos populares propagados nela, definidos por Joel como “nervos de aço”, que não se fragilizam e procuram a mulher amada. Porém, nas discussões, Maria Rosa coloca sua opinião e não se submete às provocações do diretor, fazendo com que ele precise rever estes conceitos. Ela é uma mulher que luta por sua liberdade e seus direitos; compreendendo a semelhança entre a figura interpretada e sua persona, ela se defende através das suas colocações nos ensaios.
Desta forma, o filme “Nervos de Aço” é uma contribuição para o pensamento sobre a origem de conceitos e regras nos relacionamentos interpessoais e a permanência destes na sociedade. Um olhar para o momento originário deles e uma proposta de transmutação e discussão. Também é uma visão para a produção artística das músicas do período do Rádio e um pensamento sobre o cinema contemporâneo e sua inserção em um contexto político, social e econômico, com outros valores e mentalidades. É uma produção que gera no espectador esta disposição à revisão e à renovação, através de uma discussões sobre as criações enquanto se pensa sobre o valor individual de cada pessoa.