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Neruda

Personagem (secundário)

Por Letícia Negreiros

Festival de Cannes 2016

Neruda

Junto a seus notórios trabalhos sobre damas do século XX “Jackie” (2016), “Spencer” (2021) e, mais recentemente, “Maria Callas” (2024), Pablo Larraín assina uma vasta e interessante obra sobre a história política de seu país. Nascido em Santiago em 1976, o diretor explora o período ditatorial do Chile em “Tony Manero” (2008), “Post Mortem” (2010) e “No“(2012). Em 2016, acrescenta “Neruda” à lista, se aventurando no período de exílio de Pablo Neruda pelos olhos do policial que o persegue. 

Larraín nos introduz a um Neruda (Luis Gnecco) político. Desboca, irritadiço e volátil, discutindo no banheiro com seus colegas senadores a respeito da incompetência do presidente por ele eleito, González Videla (Alfredo Castro). Em contraste, o poeta nos recebe em sua casa com riqueza. Risos, fantasias, comidas e bebidas aos montes. Diante das imagens da festa de Neruda e seus camaradas, o narrador o apresenta como Lawrence das Arábias. 

Aquele que nos conta a história não é particularmente um fã do poeta. Esse desafeto é o primeiro momento em que o diretor coloca em xeque a veracidade de sua narrativa. Não há apego pela transmissão de verdades históricas. “Neruda” dança e rodopia com a percepção de fato e ficção. Para tal, o principal instrumento do cineasta é o afastamento da obra enquanto contador da história. Ele é o autor, mas não o narrador. Não necessariamente compactua com suas opiniões e decisões, como também pode fazê-lo. De todo modo, a visão de mundo de Oscar Peluchoneau (Gael García Bernal), caçador de Neruda, não pertence a Larraín. A partir do momento que é transmitida na tela, a perspectiva anticomunista do policial e o uso como arma são apenas algo que o cineasta toma emprestado. 

O policial é uma criatura simples com apenas um objetivo: servir ao seu país e capturar os maiores inimigos do Estado, os malditos comunistas. É um homem triste, sozinho e com um propósito vazio. Não possui ambições pessoais. García Bernal vê o personagem como um “facista amoroso, se é que existe tal definição”. Não vejo amor. Vejo rancor, raiva e muito ressentimento. Odeia os comunistas, mas vê o presidente como um covarde. Não sabe quem é o causador de sua ira. Se assemelha a um garotinho assustado, buscando desesperadamente a aprovação de um pai que nunca conheceu. Um pai que ele mesmo inventou. Não é um Peluchoneau de nascença. Sua mãe não tem nome. Deliberadamente se apega a uma figura histórica, sonhando em se equiparar à grandeza e ser benquisto por ela. A ausência de um passado em meio a tantas figuras históricas planta a dúvida da existência de Oscar. É o segundo momento em que “Neruda” coloca em cheque nossa percepção. 

O Pablo Neruda de Peluchoneau é arrogante. Um pensador ardiloso e prepotente, cujo maior sofrimento no exílio é precisar viver no anonimato, longe dos holofotes, mas não de seus admiradores. O policial tenta nos vender um vagabundo, mulherengo, beberrão que não liga para o povo. Larraín, então, quebra com o afastamento antes estabelecido. Não constantemente ou a ponto de manipular as opiniões da linha narrativa estabelecida pelo inspetor, mas para trazer contrapontos. Os momentos de intervenção do autor desconcertam Oscar. O homem, que antes já parecia um tanto desesperado, torna-se um excêntrico. A perseguição a Neruda o transforma em um louco. O povo abraça o fugitivo. O esconde das autoridades. Clama por seus versos. Pablo se compadece da dor chilena. Abraça aqueles que precisam. 

Há um terceiro momento de manipulação entre fato e ficção, mas este se desfaz em uma tentativa falha. A montagem de Hervé Schneid é energética em alguns instantes e mais tranquila em outros, com a proposta de desorientar o espectador. Alternando cenários de conversas e cortando diálogos, faz com que nos percamos de quem comunica. “Neruda” alcança êxito em nos deixar tontos e sem um norte, no entanto se afasta de seu propósito, nos isolando do resto da narrativa, sem um mapa para que possamos acompanhar para onde está indo.

O poeta consegue escapar. Oscar, não. No derradeiro momento de perseguição – todos montados a cavalo no meio dos Andes – o policial perde a vida. Não em uma disputa com Pablo, mas atingido na cabeça pelo povo. Em seu leito de morte, o próprio questiona sua existência. Seria ele apenas um personagem secundário? Pior, seria ele um personagem secundário de Neruda? Em um monólogo no qual implora para não ser esquecido, nos explica a importância do poeta. O reconhece como seu criador e, no processo, derruba as imagens que fez de ambos. Quebra, assim, a tensão construída ao longo do filme. “Neruda” não é mais dúbio e a simplicidade sofrida de Oscar se torna desimportante. A dúvida de sua existência se torna esquecível. “Neruda” se torna trivial.

2 Nota do Crítico 5 1

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