Nada Sobre Meu Pai
A busca de um passado na linha imaginária do centro do mundo
Por Fabricio Duque
Festival É Tudo Verdade 2023
É inquestionável que a vida é instaurada a cada pessoa com uma vida pregressa. Já vem pronta. Desenhada até em suas lacunas que estimulam as experiências dessas descobertas. Parece que cada um recebe um jogo de quebra-cabeças ao nascer (com regras próprias, mas de forma tão universal – que causa até um descompasso quando descobrimos sua complexa simplicidade), cujas peças simbolizam caminhos a percorrer (cada dado, se mudar o jogo, pode fazer com que o participante avance, retroceda e inclusive permaneça pausado no mesmo lugar). Não poderíamos utilizar melhor metáfora para traçar linhas analíticas sobre o novo filme de Susanna Lira, obra integrante da mostra competitiva do Festival É Tudo Verdade 2023, “Nada Sobre Meu Pai”, porque a diretora, majoritariamente documentarista, embarca em uma jornada pessoal e nos apresenta sua desnuda terapia psicanalítica. Sim, é inevitável também que quando se busca algo ou alguém, a primeira regra desse caminho é aceitar que o controle não mais existe e que é preciso seguir um fluxo próprio, que é preciso aguardar novas jogadas. Nesse abismo, mais parecido como uma cegueira defensiva à dor, a imagem recebida ainda é de visão turva, atravessada por inacessíveis bloqueios vitrais, visto que não se sabe nada sobre nada. Falta-se o mais básico do tudo. Nesse processo, há um que de Yves Klein, seu salto no vazio e seu azul paradoxal (a esperança que disputa protagonismo com a decepção). Esse ato chega a se assemelhar a de uma sensação filosófica da síndrome do fim do desejo. Dúvidas e questionamentos transformam esse querer em passos. A importância deveria estar no ir e não no resultado final.
Ao avistar terra à vista, após um longo tempo no mar, Pedro Álvarez Cabral sentiu um vazio inexplicável. Um não sei ininteligível. Sua busca tinha acabado e o resultado concluído. Não, a busca de uma filha por ser pai nunca encontrará a borda, tampouco a tranquilidade de um banho de mar, porque não há meio-termos. É sim ou não. Alegria versus tristeza. Susanna Lira viaja ao Equador para encontrar seu pai, seu grande “projeto de vida”. Seu mais pungente querer. Seu desejo mais intenso. Há urgência em acalentar sua alma. É, a filha sabia que não seria fácil, que para colocar este documentário em ação e nas telas dos cinemas, não deveria atender protocolos pré-definidos à moda de Petra Costa. Esta carioca precisaria enfim internalizar a ideia desse não controle, cuja consequência a colocaria em um espiral de quebras, especialmente o da vulnerabilidade e o de escutar sem opinar, porque, nesse estágio, toda a informação chega bruta, pingada e ainda não processada. Em uma das cenas, um representante estrangeiro entrevistador pergunta: “E se você encontrar seu pai, como será?”. E eis a resposta de Susanna: “Eu não sei”.
“Nada Sobre Meu Pai” desenvolve-se por frestas, por ângulos detalhes que “forçam” uma “invasão externa” para personificar o invisível. Este metafórico artifício opta-se tecnicamente pelo atravessamento impedido, de não acesso, em que a câmera existe por filtros-efeitos embaçados, como se houvesse uma névoa do agora que não consegue penetrar na veracidade de uma memória quase inexistente. É falta após falta a começar pelo seu título, uma alusão liberdade poética ao filme “Tudo sobre minha mãe”, de Pedro Almodóvar, porque talvez a diretora queira também incluir sua mãe em todo esse processo, por respeitá-la (com direito inclusive de uma mensagem em áudio que norteia a vida das duas). O jogo parece ficar mais difícil. Dados, substituídos por emoções, nadam contra à correnteza, até porque tudo que se tem ainda é o nada a ser completado, apenas a ”recompensa” da ausência. “Nada Sobre Meu Pai” é sobre receber pistas presentes na metáfora da linha imaginária do Equador, o “Centro do Mundo”. Tudo aqui é sobre o conceito de um pai, entre “contradições, aspas, perspectivas, sentidos, memórias, direitas, esquerdas”. “Se tudo é impermanente, o instante me acalma”, inicia-se. Susanna já sabia que seu filme se transformaria uma “teoria de caso” (Espião da Cia?” Ou um atípico e utópico idealista político?); e também em um documento expositivo contra os “desencontros pelas ditaduras na América Latina”, sua ferida aberta que nunca sara, mas que encontra alívio mais em buscas que respostas.
Para que tudo isso tudo não a cegasse ainda mais na hora de finalizar suas perdas e recompensas, Susanna Lira precisava de uma fotografia que criasse a estética metafísica do afastamento, de uma epifania ao contrário. Ela encontrou no olhar sensível de Rafael Mazza o sentido da própria luz e da escuridão. Susanna também precisou rever suas escolhas comportamentais e aceitar outro desafio: o de que este filme era complemente diferente de todos os seus anteriores. Que aqui essa urgência, sua mais determinante característica, nessa necessidade imediatista de se conseguir o tudo nesse exato momento, caíria por terra. E assim, Alice Lanari foi “intimada” a colaborar no roteiro, que atravessou conceitos para neutralizá-los. “O conceito cultural do pai aqui é que o pai é a pessoa mais querida da família o que é mais respeitado”. Sim, base e convenção social. Talvez por isso sua mãe tenha tanta importância em toda essa descoberta, porque antes essa senhora era também um pai, desconstruindo vértebras do próprio conservadorismo, condicionado a permanecer numa zona de conforto não reativa. A maestria de “Nada Sobre Meu Pai” está na permissão de se perder. E mesmo que se cave uma temática consequente às vítimas da ditadura, aqui, a realidade possui seu tempo único, não adaptável e não flexível. Talvez essa seja a mais desconfortável exposição de todas que Susanna já experimentou em suas obras. Há um misto à deriva de esperança, ansiedade, carência, submissão, pressa, desilusão, ingenuidade, impotência do não poder mais, loucura pelo impossível (de ter recebido um chamado), do portunhol, de desnorteamento (ora pelo tom de superexposição do racional, ora pela falta de equilibrar o rumo das histórias ouvidas, ora porque as próprias histórias afetam a mais focal das dúvidas), e com o agravante dessa necessidade em manter isso tudo em uma narrativa cinematográfica (apresentação, conflito, clímax e final), destinada a uma audiência que julgará o conteúdo.
“Nada Sobre Meu Pai” narra bastidores. É como se estivéssemos presentes à equipe de produção (atrás das câmeras) assistindo junto, em tempo real, o exato momento da criação, sem as “ajustadas” da edição, cuja montagem de Victor Abreu, e colaboração de Eduardo Valente e Affonso Gonçalves, encontrou a cirúrgica dobra do tempo que preencheu a poesia abstrata dos instantes com a junção de ritmo, ação e silêncio. Tudo logicamente inserido pela irretocável edição de som de Tiago Picado (que por sua vez recebeu som direto de Tito Gomes, este também com a função de produtor). Ao prolongar a fala e cotidiano dos entrevistados, nós encontramos o elemento vital: a própria vida em movimentos hesitados, em estágios dúbios reais-ficcionais e em um liquidificador barulhento e desbalanceado de sentimentos contraditórios. Dentro dessa exposição, o processo transforma também a diretora em atriz, nitidamente intimidada e tímida (que inclusive gera expressões de micro sorrisos internos (sim, nós percebemos, Susanna!). É, tudo é válido por seu pai. “Nada Sobre Meu Pai” é realmente um filme de camadas. De conversa. De sincronismo. De harmonia. De liberação terapêutica. De finalizar um capítulo. De metalinguagem atravessada. Parece mesmo que existe uma presença por trás do que se mostra (quem sabe seu próprio pai, que vê e escuta tudo à distância, sem poder se manifestar por nunca conhecer o que se publica agora). Este é um filme de registro, que representa o próprio Equador, “um país que não tem registros de si mesmo”. Esse mesmo país que também tirou um pai de uma filha para um coletivo. Susanna está cansada de tantos vocabulários e nenhuma informação.
“Nada Sobre Meu Pai” segue-se pela construção do imaginário, cuja estrutura daqui pode ser referenciada à estética nostálgica do chileno Patricio Guzman com “O Grande Movimento”, do boliviano Kiro Russo. Mas por que buscar essa memória? Cura? Salvação? Susanna aceita receber em doses homeopáticas pedacinhos de seu pai. Não deve ser confortável embarcar nesse “exercício de afeto”. A diretora busca seu pai pessoal, mas encontra um pai social. Ela é mergulhada em uma aula de política, uma aula de sociedade, uma aula sobre o ser humano. Ouve-se filosofia falada, a orgânica tradução da existência da vida (de construção plural), do cinema, do humano, do tempo, da memória, da poesia pragmática, do realismo intrínseco, do individual e do “suspeito” pai de Susanna. “Nada Sobre Meu Pai” é sim um filme-carta de suspeitos pais à filha Susanna, que de pedacinho a pedacinho tenta transformar o abstrato da lembrança em memória concreta, dentro dos pontos brancos de uma neblina, da energia da vida, do Prana. Para concluir, Susanna Lira cria uma obra que transcende o próprio cinema, que atravessa espaços, que filma a invisibilidade da dúvida, que expõe defesas, que permite se perder, que se desarma para ressignificar seu passado receptivo. Podemos dizer inclusive que esta é sua obra-de-arte, porque do nada conseguiu o tudo.