Nada Será Como Antes – A Música do Clube da Esquina
Vocês não vão saber
Por Vitor Velloso
Fest Aruanda 2023
Existe um certo charme no descompasso de certas montagens de documentário, especialmente naqueles que procuram dar sentido ao seu processo através da montagem, quase que levando o espectador por esse fluxo. Outros filmes, ainda charmosos, parecem mirar em um determinado recorte do seu objeto, perdendo de vista a própria estrutura e se deixando levar por uma certa nostalgia de suas imagens e do que elas representam. “Nada Será Como Antes – A Música do Clube da Esquina”, dirigido por Ana Rieper, está mais próximo desse segundo exemplo.
Desde os primeiros minutos, o compromisso do filme não é contar a história do Clube da Esquina em si, mas de tratar de memórias, inspirações, encontros etc, quase como um projeto que visa falar do não-registrado. Nesse sentido, há uma série de méritos no documentário, desde a apresentação formal de como surge o nome do grupo, ou clube, de como algumas composições surgiram e dos improváveis encontros. O problema é que no meio de todo este afeto e sensação constante de estar próximo de lendas da música brasileira, há uma disritmia aguda na construção do filme. No jogo de alternância entre memória, material de arquivo, depoimento e registro contemporâneo, alguns blocos não parecem se conectar e outros tentam dimensionar algumas das composições, mas esse vulto ou impulso de re-contextualizar uma composição enfraquece profundamente a experiência. Um dos exemplos práticos de como isso ocorre durante a projeção, é um momento onde vemos os personagens reunidos em uma sala reproduzindo “Para Lennon e McCartney” e depois de toda uma ambientação que não possui vergonha em expor seus dispositivos de registro, uma progressão de intimidade com aqueles personagens, a montagem insere registros dos Protestos no Chile entre 2019-2020, como a letra da canção pudesse ser ressignificada ou re-contextualizada, criando assim uma espécie de dimensão atemporal.
Está claro que a letra não é anacrônica e esse exercício de didatizar ligações de eventos contemporâneos com a composição, através de uma desconexão profunda com seu próprio objeto, parece diminuir a própria concepção da composição. O ouvinte e leitor que possui contato com (trecho abaixo) pode interpretar uma quantidade verdadeiramente enorme de questões para se debater, mas “Nada Será Como Antes – A Música do Clube da Esquina” faz questão de delimitar um recorte que é absolutamente estranho à própria condução que desenvolve, especialmente com o contexto onde o trecho é inserido.
Não precisa medo, não
Não precisa da timidez
Todo dia é dia de viver
Eu sou da América do Sul
Eu sei, vocês não vão saber
Mas agora sou cowboy
Sou do ouro, eu sou vocês
Sou do mundo, sou Minas Gerais
De alguma forma, essa é uma proposta recorrente do filme, procurar trabalhar entre a nostalgia e a verve política inerente da produção cultural, e em diversos momentos o projeto consegue expor isso de forma eficiente, especialmente em momentos onde os personagens falam de uma relação entre movimento estudantil e cinema como grandes pontos de referência para o Clube da Esquina, suas carreiras e vidas pessoais. Porém, novamente, a montagem desloca esse tipo depoimento para um lugar que é estranho ao desenvolvimento desses registros, trazendo trechos de “Documentário”, de Rogério Sganzerla, “Sagrada Família”, de Sylvio Lanna e outros filmes para mimetizar, ou exemplificar, questões ditas pelos personagens, mas esses momentos não possuem um funcionamento prático, se apresentando apenas como interrupções burocráticas e descontextualizadas.
Por essa razão, “Nada Será Como Antes – A Música do Clube da Esquina” nunca consegue se transformar nessa experiência imersiva ou mesmo de transmutações, mas sim uma espécie de retalhos de excelentes registros e uma estrutura que prioriza a história por trás das composições, trazendo detalhes técnicos e algumas falas emblemáticas, como Robertinho Silva dizendo: “isso não é rock, é afro”. Por fim, é um projeto que parece ser assombrado por dois mitos mal resolvidos pelo documentário: sua reconjecturas com materiais de arquivo e Milton Nascimento. Aliás, vale mencionar que uma grande parte dos filmes que possuem Clube da Esquina, ou membros, como objeto, possuem uma enorme dificuldade de lidar com Milton Nascimento, seja por excesso de respeito ou idolatria, o fato se repete. Não por acaso, ele abre e fecha o filme, sem nem mesmo aparecer na imagem.