Nada a Perder 2
Construindo da Tribuna um Tribunal
Por Jorge Cruz
Ampliando a experiência de ver a primeira parte da cinebiografia de Edir Macedo tentando me despir de preconceitos, me permiti uma experiência que, confesso, a depender do meu gosto pessoal jamais faria: ir em um domingão à tarde em um shopping para assistir junto aos populares “Nada a Perder 2”, continuação de “Nada a Perder – Contra tudo, por todos”. Importante que se diga que, ao contrário de alguns registros na imprensa, a sessão estava com ingressos esgotados e, de fato, estava lotada. Traçar o perfil de quem vi entrando e saindo do cinema é trabalho para uma análise que extrapola bastante os limites da crítica cinematográfica. Mesmo assim, vale mencionar que era em boa parte grupos grandes, de duas ou três famílias reunidas.
Se as bilheterias dos filmes produzidos pela Simba dentro do “Universo Record Cinematográfico” são infladas por aquisições de ingressos pela própria Igreja Universal do Reino de Deus, que os distribui para pessoas que não necessariamente utilizarão a entrada, é uma discussão mercadológica, publicitária e – caso algum indício de irregularidade seja identificado – policial e jurídica. Isso em nada tem a ver com o produto artístico. “Nada a Perder 2” cria uma bifurcação no caminho traçado pelo longa-metragem original. A forma como chegará aos espectadores será mais do que apenas diferente entre quem acredita na história de Edir Macedo e quem não acredita: ela será antagônica.
Logo de início, percebe-se uma diferença na narrativa: troca a linearidade da primeira parte pela utilização de flashbacks com o velho Edir Macedo contando para o biógrafo ghost writer da trilogia de livros “Nada a Perder” sua história. A execução das cenas também se altera. Saem as sequências rápidas de passagens da vida do protagonista (novamente vivido por Petrônio Gontijo), o ritmo acelerado e a montagem protocolar. Entram tomadas mais desenvolvidas, o trabalho direção mais acurado de Alexandre Avancini e uma montagem mais pensada. A perseguição aos fiéis como consequência da reverberação do caso do chute na Nossa Senhora Aparecida, que serve de prólogo, carrega uma tentativa de se aproximar do chamado “cinemão”. Todavia, a maneira como os realizadores de “Nada a Perder 2” cuidam da obra é tão dissonante na comparação com o capítulo de origem, que nos leva a crer que eles estão brincando com o público.
A escolha de dividir a trilogia de livros em duas obras audiovisuais parece se fundamentar no binômio causa x consequência. Foi mostrado primeiro o caminho traçado por Edir Macedo da infância até o sucesso em sua empreitada de fé, para depois abordar o que se sucedeu a esse pico de fama, focando nas partes que ele entende como injustiças contra sua pessoa. Sim, a maneira como devemos lidar com “Nada a Perder 2” destoa da tentativa de ser sincero e minimamente distante sob o prisma ético da Parte I. Esse filme tenta transformar a tela de cinema em um tribunal do biografado, apenas para que os advogados de defesa transmitam seus argumentos pela boca dos outros personagens.
Sendo assim, três grandes polêmicas são trazidas à superfície, em tramas que ocupam quase a integralidade da duração do longa-metragem – que, por sinal, possui algo como uma hora e quinze de projeção de fato, permeada com montagens e cenas inteiras totalmente desconexas, como veremos adiante. A primeira delas é o já mencionado caso ocorrido em 12 de outubro de 1995, quando o pastor Sergio Von Helder, em sua retórica que condenava a idolatria a santos, dá pancadas e chuta uma imagem de Nossa Senhora Aparecida ao vivo na televisão. A todo momento é falado e repetido que isso foi uma decisão pessoal do pastor, que teria levado a imagem escondida para o estúdio onde faria o programa da madrugada. Isso nada mais é do que atribuir responsabilidade pessoal a Sergio por crimes, já prescritos por sinal, de intolerância religiosa e incitação à violência a partir de um discurso de ódio.
O segundo momento possui uma didática ainda mais forçada. Ao retratar a queda do telhado de um templo da IURD em Osasco no dia 5 de setembro de 1998, se apresenta a versão de que a entidade errou ao utilizar estruturas arquitetônicas já existentes ao invés de construir suas igrejas – um erro que Edir Macedo acredita ter corrigido nos anos seguintes. Em dada hora, o protagonista questiona se não havia fiscalização no local, quando um dos personagens traz uma fala que parece leitura de nota de assessoria de imprensa: “claro, todas as nossas igrejas passam periodicamente por uma fiscalização rigorosa”. Ou seja, não há uma construção minimamente aceitável de cinema em “Nada a Perder 2”. Tudo o que foi dito na crítica da primeira parte, acerca da utilização de procedimentos, formatos e linguagens universalmente aceitas no cinema, são ignoradas nessa panfletagem.
Até foi mencionado como “Polícia Federal – A Lei é Para Todos” e a série “O Mecanismo” usam o expediente de respeito aos cânones, mesmo que se discuta suposto estelionato de narrativa. Mesmo que à luz da imparcialidade, precisamos encontrar certa dignidade na contação de uma história. O terceiro e último momento fica por conta da inserção de um personagem que vê em Edir Macedo a oportunidade de ascensão na carreira de religioso. Seria ele um micro vilão, já que a Igreja Católica, os políticos e o Poder Judiciário se repetem nos papéis de Eduardo Galvão, Otávio Martins e Dalton Vigh como grandes antagonistas do bispo. De forma caricata, ele aparece tirando fotografias do casamento de uma das filhas de Macedo, cuspindo comentários ácidos sobre os ganhos patrimoniais do religioso. Até que um dos auxiliares do protagonista, didaticamente, o censura dizendo: “Você sabe que esse dinheiro vem dos milhões de discos e livros vendidos pelo bispo”.
Direcionar tanto assim a narrativa, flertando com a desinformação, era esperado quando se anunciou que o próprio conglomerado de empresas de Edir Macedo produziria sua cinebiografia. Todavia, confesso que o primeiro filme deu esperanças de que a desfaçatez seria melhor ocultada. Se há algo palatável na trama apresentada é a intenção do fundador da IURD de, sempre que publiciza suas decisões, agir na tática da contenção de danos, muito por conta do processo de institucionalização das condutas abordado na crítica do longa-metragem de origem.
Demonstrada a total ausência de compromisso com nada que não seja a boa propaganda do patrão, questões estéticas também incomodam em “Nada a Perder – Parte II”, bem mais do que na produção anterior. Podemos citar algumas utilizações de CGI com o padrão novela da Record de qualidade; a ausência de envelhecimento de Ester, esposa de Edir Macedo interpretada por Day Mesquita, mesmo em uma trajetória de quatro décadas; e talvez o momento mais constrangedor do filme, com a cena que se passa na África do Sul. Uma maneira de alardear a internacionalização da IURD ocorre em um grupo de cenas totalmente desconectadas do restante da trama, lembrando aquela parte do trabalho de grupo do colega de turma que decide participar de última hora. Por não conter o ímpeto de idolatrar seu biografado, “Nada a Perder 2” entregou uma obra exemplar para aqueles que se nomearam seus detratores antes mesmo de seu lançamento.