Na Cabine de Exibição
A verdade das imagens em um jogo de xadrez
Por Fabricio Duque
Durante o Olhar de Cinema 2020
O teólogo Agostinho de Hipona, mais conhecido como Santo Agostinho, buscava atingir a essência pela retórica e pela antropologia metafísica da razão (ainda que pelo viés maniqueísta). Uma cadeira, por exemplo, precisava ser traduzida pela inerência do existir e não pela facilidade sugestiva do olhar, que se condiciona por padrões receptados, repetindo obviedades do ver. Mas então o que uma imagem significa? Como atravessá-la para enxergar além? Como separá-la do entranhado subjetivismo? A premissa pode (e deve) ser empregada em “Na Cabine de Exibição”, um misto de documentário formal com percepção ficcional, que integra a mostra competitiva da edição online do Olhar de Cinema 2020, após ter sido exibido no Festival de Berlim deste ano. Seu diretor, israelense, Ra’anan Alexandrowicz (de “The Law in These Parts”, 2011, vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Cinema de Sundance), conduz o público, e principalmente seus personagens selecionados, a uma provocativa experiência imagética de confronto quando expõe possibilidades diversas do olhar.
“Na Cabine de Exibição” é uma análise de antropologia comportamental perante a contemplação individualista da sociedade, querendo provar que cada um reage de uma forma e totalmente idiossincrática às imagens, inclusive, ao longo do filme, é permitido ao espetador inferências cinematográficas, como a de “Laranja Mecânica”, que “doma o olhar” para manter o maniqueísmo sem nenhum questionamento, que pode levar à confusão e “perturbar” a mente. É um “quebra-cabeças” de um “jogo de espelhos deformadores”, tudo para encontrar a essência não só da alma humana (enquanto indivíduo de um mundo), mas também para desconstruir a imagem com novas perguntas e retóricas. No Talmude, “Viver bem é a melhor vingança”. Aqui, observar e destrinchar o que se vê, uma terapia de se chegar mais próxima de uma verdade (contra a encenação das “fakes news”).
“E se olhássemos para mesmas fotos e sentirmos as mesmas coisas?”, o filme começa com uma parábola literária de Virginia Woolf. O “jogo” é simples. Um “selecionado” comenta, em tempo real o que se está vendo e o que que se está sentindo, para uma câmera que filma e exibe a “protagonista”, com o objetivo de encontrar respostas e traduções do sentir ao olhar vídeos que mostram a violência de “guerra ocupada”, entre árabes e judeus. Israel e Palestina. “Hebraico e árabe, não faz sentido” e/ou “achar o terrorista por causa da roupa e porque parecia árabe” e/ou “tentar identificar o conflito se é pró-Israel ou não”. “Na Cabine de Exibição” é um quiz da vida real, protegido do “campo”. A seleção incluiu sete estudantes, que “aceitaram analisar esses filmes”. “Eles são nascidos e criados nos Estados Unidos, mas se preocupam com Israel ou tem interesse. Foram escolhidos 40 vídeos, entre milhares como esses on-line”, o diretor explica as “regras”.
Assim, nós percebemos padrões do olhar. De condutas e moralidades. Como a “tristeza por crianças serem retiradas de suas camas no meio da noite”. Essa percepção soa mais ingênua, ainda que com discurso arquitetado e politizado (dentro, logicamente, da “bolha” turística de opinar por fora). E é analisada pelo pragmatismo (na maioria das vezes), pela lógica quase literal e pelo olhar maniqueísta (olhando o que quer ver – tendenciando a enxergar mais elementos “tendenciosos”). Durante uma hora e meia e onze vídeos assistidos. Ra’anan “quer refletir sobre o ponto de vista dela”. As contradições embasam-se na emoção e nos condicionamentos de seriados de televisão, por exemplo “Fauda”.
“Na Cabine de Exibição” comporta-se como uma metalinguagem, porque quando enfrenta sua personagem principal, a transformando em inimiga potencial, gera o desconforto da aparência que precisa ser neutralizado e apagar rastros de vulnerabilidade. “Esse vídeo não é bom pra Israel. É intenso”, ela diz, olhando o documentário com olhos ficcionais de uma estudante de cinema. “Um fragmento dessa realidade que a pessoa que segura a câmera quer mostrar. Transforma o espectador em testemunha”, diz-se. “Crianças israelenses não fariam. As árabes fazem o tempo todo”. E quando tem a informação de que são israelenses, a receptora fica confusa e começa a tentar “defendê-los”.
Seis meses depois, a personagem assiste a si mesma analisando o que falou antes sobre as mesmas imagens. Por que será que a percepção-opinião mudou? “Você acha que Fauda, seriado da Netflix, pode colocar uma bomba na nossa cabeça fazendo a gente ver uma nos vídeos da B’Tselem?”, pergunta o diretor. “Sim”, ela responde. “Eu estou presumindo que sua mente mistura fato com ficção. Se você assistir a um vídeo, você não sabe se é verdade ou se as coisas estão conectados de alguma maneira”, e assim contextos, discrepâncias e embasamentos conscientes (espremidas do mais fundo do insconsciente) são procuradas. “Por que que está sendo filmado e porque que está sendo exibido”, rebate-se com retórica do motivo desses vídeos existirem. “Você não vai saber. Você está completamente nas mãos de quem está filmando isso. Mas o espectador tem controle, porque ele escolhe o que quer ver. Ainda tenho muito que aprender com a sua perspectiva. Você está livre para sair da cabine”, finaliza-se com um xeque-mate de Ra’anan Alexandrowicz a sua “oponente”.