Mussum, o Filmis
Uma leitura original da realidadis
Por Fabricio Duque
Festival do Rio 2023
Após ter sido documentado por Susanna Lira, Mussum ganha agora uma versão ficcional. Se em “Mussum – Um Filme do Cacildis”, a realizadora carioca buscou o tom da humanização ao abordar polêmicas do humor politicamente incorreto (contada por ângulos, perspectivas, barreiras e distâncias), aqui, na nova obra em questão realizada pelo ator (e agora diretor) Silvio Guindane, a atmosfera narrativa deseja enaltecer o eterno Trapalhão e observar (sem discutir, agindo quase com submissão-aceitação) o racismo estrutural que o artista “negão” recebeu durante toda a vida. Roteirizado por Paulo Cursino, com base no livro “Mussum – uma história de Humor e Samba”, de Juliano Barreto, “Mussum – O Filmis” desde o início se apresenta como um filme de esquetes (“esperando a Mangueira passar”). De instantes vividos advindos das memórias de Antônio Carlos Bernardes Gomes, seu nome de batismo, cuja câmera quer o subjetivismo da imagem (ora passeando, ora um balé, ora completamente “mosca” sem ser notada), para que assim o espectador possa melhor imergir na emoção desencadeada, que no caso da mãe no hospital tende a uma maior dramaticidade sentimental – que o estimulou a crescer e nunca perder um dia na escola, “porque preto e burro não dá”, dizia. O filme é acima de tudo uma ode-homenagem a essa senhora analfabeta que trabalhou muito para criá-lo de forma decente.
Em “Mussum – O Filmis”, a narrativa é de viagem ao tempo, que encontra o passado da infância, no morro, entre o dilema do samba, do trabalho e de ser artista humorista. E o roteiro conduz-se pela empatia, perspicácia, graça naturalista (de zoação cúmplice) e pelas esquetes dos Trapalhões, refeitas para a ficção. É nessa hora que entendemos que o caminho do filme é a identificação, especialmente do diretor Silvio Guindane, que quer conservar a reputação da vida de Mussum, destacando muito mais o lado da causa (a criação de sua mãe – que lutou para que ele “tivesse escolha” – e a contrapartida dele em ensiná-la a ler) que as consequências já conhecidas, mas sem esquecer de mencionar tudo o que foi importante, não só mostrando a história no Originais do Samba, como deixando na íntegra os reconstituídos números musicais. “Mussum – O Filmis” vem com potência de “vida quente”, entusiasmo e interpretações entregues (absolutas, naturalistas e coloquiais), como a de Ailton Graça, que vive o protagonista, entre Elza Soares, Cartola, Grande Otelo, Chico Anísio, Alcione, Clara Nunes, Acapulco e “peixe preto”.
O longa-metragem também acontece pelo linguajar particular, com suas gírias, máximas, ditados populares e comentários específicos da época (“4 é queda, 3, afrouxa, 5, alarga” e/ou “Não se sentar em dois cavalos com uma bunda só”), num humor mais pastelão. “Se você pode escolher, é porque viveu bem”, diz. “Mussum – O Filmis” é um mergulho na vida desse sambista e um dos “Trapalhões”, programa com comédia escrachada, direta, sem filtros e que hoje (sem dúvidas) seria cancelado. Sim, só quem viveu os anos oitenta pode entender o que foi realmente os anos oitenta. Assim como no filme da Susana, neste, “Mussum – O Filmis”, o ponto alto é mesmo as cenas do Originais do Samba e a irretocável caracterização dos atores vivendo os Trapalhões, e também a mensagem da representação, de estar à frente de um dos momentos mais importantes da música brasileira, e da representatividade negra no horário nobre da televisão da Rede Globo. No documentário, a narrativa mescla conteúdo e graça, principalmente pela narração explicativa, pautada mais a um espirituoso didatismo, do ator Lázaro Ramos, já aqui a base se concentra na existência sentimental de Mussum, em lidar com a falta de tempo para com sua família. Só que lá a personagem era o próprio ator real, neste um ator ficcional. Sempre me questionei sobre como assistir a uma ficção, que pelo próprio dicionário se define como uma “criação artística, em que o autor faz uma leitura particular e original da realidade”.
Sim, tudo aqui é uma releitura por uma narrativa imaginária, baseando-se na subjetividade do diretor, que traz suas vivências, dramas, conflitos e feridas. “Nós não podemos esperar que uma ficção seja o retrato fiel da verdade, até porque, seu propósito-função existencial reside na liberdade poética de recontar histórias, como um espelho da realidade, que escolhe camadas e pontos de vista”, escrevi isso no texto de “Meu Nome é Gal”. Dessa forma, e para complementar, “Mussum – O Filmis” deve ser assistido absorvendo a formação e interferência de seu redor com os porquês, os nãos e os sims até a construção de uma língua nova do sucesso: “is” do final.