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Muriel

Ciclotimia das imagens

Por João Lanari Bo

Festival de Veneza 1963

Muriel

Alphonse conta umas histórias para si mesmo, isto é certo; Hélène passa a vida se deparando com atos falhos; Bernard reaviva constantemente a lembrança daquilo que mais o marcou, a cena da tortura, para se sentir vivo. Todos têm ciclotimia. Vão como algas que boiam no mar, até que encontram uma rocha à qual se segurar… (Alain Resnais)

É dessa forma que Resnais definiu alguns dos personagens do longa “Muriel”, realizado em 1963. Talvez os principais, o núcleo da estrutura dramática: mas a noção de núcleo aqui é relativa, seria algo como um núcleo que desliza, que não oferece ao espectador aquela estabilidade tranquilizadora da simulação do real. O que está em jogo para Resnais é mais o processo de construção (ou desconstrução) desse arquétipo do cinema, a procura de verossimilhança com o que pode ser percebido como “realidade”. Tal como em “Ano Passado em Marienbad” (1961) e “Hiroshima, meu amor” (1959), seus trabalhos mais conhecidos, a memória – individual e coletiva – é o dispositivo básico para a caminhada.

Muriel” – cujo título no original é “Muriel ou le temps d’un retour” – transcorre suas ações na cidade de Bolonha-sobre-o-Mar, norte da Franca, face ao Canal da Mancha. Acompanhamos de modo entrecortado as histórias de Hélène (Delphine Seyrlg, inigualável), viúva e negociante de móveis e objetos antigos, que acumula em seu apertado apartamento; Alphonse (Jean-Pierre Kérien), ex-amante de Hélène e visitante; Bernard (Jean-Baptiste Thiérrée), enteado de Hélène e soldado em licença – estava na guerra da Argélia, movimento de libertação nacional daquele país do domínio francês, entre 1954 e 1962. Bernard, o mais enigmático em uma galeria de personagens enigmáticos, tem uma namorada, Muriel, que nunca aparece: ela é o ponto cego do filme.

O trânsito de idas e vindas dos seres focalizados é, em última análise, o tema em questão. Encontros e acontecimentos que se anunciam e não se realizam; conversas, íntimas ou não, que são interrompidas e não se completam; tudo aquilo que conforma a razão narrativa clássica, aquela da sutura invisível de tempo e espaço, se esvai. Tudo aquilo, enfim, que faz com que o cinema se submeta às necessidades de um público pagante desejoso de escapar de uma realidade repleta de emoções desgastadas. O cinema, lembra Jean Cayrol, escritor e roteirista de “Muriel”, não deve perder de vista seu carácter subversivo – não deve colocar-se a serviço do divertimento inerte e desencarnado.

Cayrol é um dos precursores do nouveau roman, movimento literário francês que marcou as décadas de 1950 e 60. Foi narrador e autor do texto do fulgurante “Noite e neblina”, perturbador documentário que Resnais dirigiu em 1956 sobre Auschwitz. Jean Cayrol é ele mesmo sobrevivente dos campos de concentração: militou na Resistência e escondeu crianças judias na escola que dirigia. Após a guerra, dedicou-se à poesia e ao romance – de certa forma, a saturação de realidade (ou realidades) que testemunhou levou-o a um método de escrita abstrato e metafórico, desafiador do uso tradicional da cronologia, enredo e personagem na ficção, bem como do narrador onisciente, aquele que conhece toda a história e os detalhes da trama.

Essa rejeição do realismo naturalista provoca desconfortos na audiência, perplexa diante das descontinuidades e sobressaltos da montagem, que incorporam a ciclotimia dos personagens. Ciclotimia: conjunto de sintomas que incluem mudanças de humor e altos e baixos psicológicos intermitentes, mais ou menos acentuados ao longo do tempo. Alain Resnais definiu o método de montagem de “Muriel” da seguinte forma:

Na montagem, me esforço de fazer uma escolha perfeitamente livre, de misturar os planos, por exemplo, e de tirar a referências das claquetes, de maneira que não saiba mais qual é o número de uma tomada, para ser um espectador completamente novo e chegar a escolher em função de critérios que não sejam contaminados pela lembrança das filmagens.

Não surpreende que os letreiros do filme indiquem cinco pessoas como continuístas, duas principais e três assistentes, provavelmente um recorde. Um tal método produz um conjunto de temporalidades difratadas, de imagens-tempo com uma lógica de percepções potentes e inesperadas. Cinema como forma de pensamento, como queria Deleuze: ou, como sintetizou Cayrol, autor de um livro sobre cinema, Droit de regard:

A imaginação poderia assim ser definida como a percepção ou apreensão da realidade através desse universo paralelo que lhe seria submetido no cinema, e cujo tempo de leitura (o ritmo da montagem), não seria mais o tempo de ver uma imagem, tão rápida, mas o tempo de visão necessário para a bifurcação desta imagem.

5 Nota do Crítico 5 1

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