Curta Paranagua 2024

Mulheres em Auschwitz – Escritas de Resistência

Relatos-monólogos

Por Pedro Sales

Mostra Cavideo 26 anos

Mulheres em Auschwitz – Escritas de Resistência

“Quatro horas. Entrar na fila para fazer xixi. Tomar uns goles de chá. Colocar o pé na escuridão. Esperar a contagem de pé na rua do campo. Ser contada. O sol se levanta. Ser contada novamente. Entrar na fila para ir às campinas. Caminhar. Trabalhar, trabalhar, trabalhar até que eles digam: ‘Hält’. Marchar em filas perfeitas de cinco pessoas. Esperar a contagem. Ser contada”, essa era a rotina torturante das várias mulheres que estiveram nos campos de concentração de Auschwitz. Quase 80 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, o Holocausto ainda continua um tema relevante, que inspira reflexões e produções artísticas, principalmente quando o totalitarismo e a intolerância parecem resistir. Em “Mulheres de Auschwitz – Escritas de Resistência“, a retomada dos textos originais escritos pelas vítimas que estiveram nos campos de concentração produz um relato único, em que as experiências incorporam-se em um só discurso. Embora sejam singulares, todas aquelas mulheres sofreram das mesmas dores e terrores.

As diretoras Regina Miranda Patrícia Niedermeier tiveram como base a produção de autoras como Simone Veil, Gertrud Kolmar, Magda Herzberger, entre outras sobreviventes de Auschwitz. Para além de uma simples leitura de depoimentos, há na obra preocupação em adequar narrativamente os textos. A cineasta Patrícia Niedermeier, além de dirigir, interpreta essa mulher que simbolicamente desembrulha as memórias encaixotadas, cujo único traço de identificação são fotos. Ela traz para a própria pele as histórias confessadas furtivamente em diários e hoje redescobertas, valorizadas. A abordagem, portanto, é bem pessoal e emotiva, pois trata das mulheres como muito mais que “vítimas sem nome e corpos tatuados”. Isso se dá principalmente pela estrutura narrativa da obra, que se apropria dos textos em ordem cronológica. Dessa forma, a personagem refaz o mesmo trajeto das vítimas do Holocausto: da normalidade ao trem, do trem aos campos, e dos campos à memória, aqui imortalizada pelas cartas.

Muitas obras, ao longo da história, trataram da mesma temática. Steven Spielberg dirigiu “A Lista de Schindler” (1993), abordando como um homem fez o possível para salvar vidas. O diretor francês Alain Resnais realizou um dos mais desoladores filmes sobre Holocausto. Em “Noite e Neblina” (1956), o retrato cru dos terrores infligidos no período impacta como poucos. “Mulheres em Auschwitz“, entretanto, se distancia de ambos exemplos. Não é tão ficcional quanto o longa de Spielberg e não tão documental quanto o de Resnais. A obra de Miranda e Niedermeier parte de um lugar muito próprio, calcado na teatralidade dos relatos-monólogos de resistência que Patrícia incorpora. A predominância do discurso e da memória, nesse sentido, lembra um pouco uma cena específica de “Crônica de um Verão” (1961). No documentário de Jean Rouch e Edgar Morin, uma sobrevivente do Holocausto anda pelas ruas de Paris falando de seu passado.

Mas aqui, por outro lado, a mulher interpretada por Patricia Niedermeier rompe com essa subjetividade do discurso e universaliza as diferentes experiências, concentrando os textos em uma só personagem, ela. Parece até mesmo que o filme se trata da adaptação de um monólogo teatral para o cinema, mas não é o caso. Apesar da clara teatralidade, desde as quebras de quarta-parede até a interpretação, não se trata de um teatro filmado. As diretoras conseguem explorar os aspectos teatrais de forma cinematográfica. Os cenários quase todos em ruínas reforçam os sentimentos da protagonista e amplificam a significação do que ela diz. A estação de trem abandonada, a parede de tijolos e as pedreiras são tão expressivas quanto o vazio cênico, pois se associam diretamente à performance de Niedermeier. O trabalho de câmera também rompe com essa teatralidade aparente. A decupagem usa planos detalhes, closes da atriz, e em momentos de fuga, a câmera na mão a acompanha, corre junto dela. Além disso, a montagem e o som constroem certa angústia. Os jump cuts, fusões, sobreposições de som e repetições do texto evocam a impotência diante da rotina das vítimas.

Mulheres em Auschwitz” é uma obra sensível que dá voz às milhões de pessoas que sofreram com um dos episódios mais terríveis da história recente, o Holocausto. Os vários relatos amalgamados em um só pelas cineastas demonstram que os traumas foram os mesmos. A performance de Patrícia Niedermeier, que é a força-motriz do longa, consegue muito bem estabelecer a fragilidade física e mental enfrentada pelas mulheres em Auschwitz, mas ainda sim mantendo uma carga de revolta. “O que me parecia desordem, eu sei que foi planejado”, vocifera a mulher em dado momento. Por mais que a expressão predominante seja o rosto encovado e os olhos inchados que transmitem uma desolação evidente, as diretoras não querem que esta seja a “mensagem final” do longa. De maneira poética e com a delicadeza e humanidade necessárias para uma obra desta magnitude emocional, Regina Miranda e Patricia Niedermeier ressaltam o caráter de resistência dessas mulheres. As cartas deixam de ser apenas relatos das condições desumanas, tornam-se um manifesto que evoca força para existir e resistir.

4 Nota do Crítico 5 1

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