Mudos Testemunhos
Ressignificação de imagens
Por Pedro Sales
Durante o Festival Olhar de Cinema 2023
A manutenção e preservação da história do cinema parece ser um ideal dos grandes cineastas. Nos anos 80, Jean Luc Godard realizou “Histoire(s) du Cinéma” (1988), um vídeo-projeto de oito “episódios”, totalizando 4h26, em que o realizador, de forma poética, medita sobre a arte cinematográfica. Já no século XXI, o projeto World Cinema Project, fundado em 2007 por Martin Scorsese, preserva e restaura filmes “esquecidos” de todo o mundo. Nesse mesmo contexto, surge “Mudos Testemunhos“, longa colombiano que fez parte da mostra Novos Olhares do 12º Festival Olhar de Cinema. A obra dirigida por Jerónimo Atehortúa e Luis Ospina se apresenta como um “filme imaginário”, “um melodrama em três atos”. Antes de ser tudo isso, este é um filme que preserva a história do cinema mudo colombiano. Enquanto Godard exalta a cronologia do cinema em forma quase ensaística, a dupla propõe uma recriação ficcional de filmes mudos colombianos. As cenas centenárias, portanto, são reorganizadas em uma nova história.
Efraín (Roberto Estrada Vergara) ama Alicia (Mara Meba), que é casada com Uribe (Rafael Burgos). Nessa quadrilha, ou melhor, triângulo amoroso, o amor impossível é construído com trechos de outros filmes que este trio esteve presente – e alguns que nenhum dos três atuou. Entre os títulos utilizados estão: “Aura o las violetas” (1924), “El amor, el deber y el crime” (1926), “Como los muertos” (1925), “María” (1926), “Manizales city” (1925), “El trágico final de Gardel, su última despedida” (1935). Dessa forma, a obra adquire um aspecto notadamente de resgate histórico, sobretudo do Cinema Mudo Colombiano (1922-1937). Ou seja, este é um filme póstumo em todos os aspectos, primeiramente pelo fato de ser montado a partir do passado, da história do cinema colombiano, e também por ser a última obra assinada pelo diretor Luis Ospina, morto em 2019. A finalização do projeto, então, foi feita por Atehortúa, que define o projeto como um filme para “conjurar outras mortes: a de nossas imagens, da nossa tradição e outros rostos mais íntimos da morte”.
A estrutura narrativa do longa é bastante convencional, à moda das obras mudas. O ato 1, “Amour Fou” (“amor louco”, em tradução livre), representa o encontro de Efraín e Alicia, o nascimento de um romance que lida com julgamentos e o fantasma da infidelidade. O segundo, “Dias de Ira”, diz respeito às dúvidas de Uribe e um possível embate. O último, para fechar o melodrama, chama-se “Diário de Efraín”. Assim, Ospina e Atehortúa não só preservam os arquivos combinados em uma nova história, como preservam a essência do cinema mudo. A utilização de viragens azuis, sépia e vermelhas parecem obedecer às emoções dos personagens. Além disso, os intertítulos, por exemplo, conseguem emular de forma fiel os desse período histórico, assim como a trilha sonora feita por Carlos Quebrada. Em razão do aspecto silencioso dos filmes da época, a música sempre foi um pilar essencial para induzir o público a diferentes emoções. Aqui não é nenhum pouco diferente. As canções se ressaltam ao longo de “Mudos Testemunhos“, os naipes de metais, quase sempre estridentes, junto ao baixo acústico promovem uma atmosfera que vai da tensão ao humor. Da mesma forma, os ataques na parte mais aguda do braço do violino reforçam uma crescente ansiedade na descoberta desse amor oculto.
Ao mesmo tempo em que o filme pende ao convencional, no que tange sua história bem típica e linear, sua própria essência de criação é bastante arraigada no experimental. Ospina e Atehortúa não só possuem um projeto que evoca experimentalismo – afinal, a recriação ficcional com base em excertos de outros filmes não é nem de longe algo comum -, os realizadores transpõem isso em um aspecto formal também. Em muitos momentos, o longa utiliza uma confluência de imagens sobrepostas à revelia, sem nenhum padrão, a imagem também é deformada a partir da inversão de cores do negativo e o som é ruidoso e algumas vezes distorcidos. Então, a obra transita com muita facilidade entre o clássico e o experimental. A montagem é talvez o maior exemplo disso, pois integra também o documental (a morte de Gardel como exibição de um cinejornal, a população ribeirinha no lugar de esconderijo) ao ficcional.
“Mudos Testemunhos” é um filme que constrói uma dialética entre recuperação de arquivos e ressignificação das imagens. Recriar por meio do que já existe, inventar uma história nova a partir de outras parece ser uma homenagem muito mais efetiva ao Cinema Mudo Colombiano do que um simples documentário coberto de didatismo. É uma preservação não só das imagens, mas da essência narrativa destes filmes. Atehortúa é privilegiado por estar à frente de uma obra que honra dois legados: o do cinema colombiano e o do diretor Luis Ospina. Concomitante aos méritos de produção e desenvolvimento do projeto, que é um “pequeno milagre cinematográfico”, a própria melancolia do argumento consegue envolver o espectador, e a preservação arquivística proposta consolida no cinema o papel único de meio de expressão e mídia para manutenção histórica.