Panorama final da 13° CineOP: O alzheimer negligenciado da memória nacional
Por Gabriel Silveira
As entrevistas e conversas citadas nesta publicação virão a ser publicadas pelo Vertentes em breve.
Em meio aos ares confluentes da CineOP conversei com Cavi Borges sobre a jornada do judoca que — após lesões que impediram-no de continuar representando o Brasil durante as olimpíadas nos anos 1990 — resolveu embarcar na empreitada de abrir uma locadora de filmes de luta na Cobal do Humaitá que, posteriormente, não haveria outra opção além de vir a ser uma das locadoras mais influentes dentro do circuito audiovisual carioca. Além de disponibilizar cópias de obras de nicho não encontradas em outros lugares do Rio, o empresário trazia do exterior bootlegs de projetos do underground internacional que, se não pela Cavídeo, não haveriam de encontrar o caminho às prateleiras cariocas. Cavi compartilha que foi, justamente, em meio ao centrifugar desta cinefilia que rondava seu investimento que este teve seu primeiro contato com aquelas obras-ponto-de-referência que dão a primeira ignição no espírito de afetos para com nosso discurso audiovisual. Em meio a esta cinefilia e desejo de produzir crescente — tendo produzido obras ao lado de artistas do Morro do Vidigal e catalisado, em seu espaço, o surgimento de inúmeros cineclubes — o produtor acabou entrando para os anais da história do cinema brasileiro através de seus esforços para com o resgate de obras de autores de nosso cinema de invenção, trazendo à luz não somente obras anteriores — consideradas clássicos vitais pelo paideuma de Jairo Ferreira — como produziu veemente novos longas destes em um cenário de válido acesso público. Cavi é um dos insanos expoentes de nosso cinema independente que trabalha às margens da obtusa burocracia de editais da Ancine, onde produzir um filme por X, de seu próprio bolso, e lucrar veio a tornar-se um artifício ainda mais raro nestes tempos de crise do governo Golpista.
Mais tarde, no mesmo dia (18), entrevistei Amanda Beça, uma das artistas da vanguarda pernambucana que revelou-se uma verdadeira artesã do cinema transmídia com seu curta-metragem O olho e o espírito. Em O olho, Beça põe a teste a experiência de rodar 16mm reversível nos trópicos sem um devido laboratório de mercado e sem orçamentos europeus. Para seu trabalho de conclusão de curso, Amanda montou um laboratório de revelação caseiro onde teve de correr atrás dos químicos de revelação e realizar todo o processo por conta própria. Com ajuda de amigos que moravam temporariamente no exterior, conseguiu importar os negativos fora da forca das taxações horripilantes de nossa alfândega (em 2018 o dito de P. E. Sales Gomes apenas consolidou-se ao seu cúmulo extremo, “No Brasil é mais barato importar uma película pronta do que comprar filme virgem”). Após revelado o filme (que por ser 16mm reversível, a revelação transforma o próprio negativo em positivo, fazendo com que a única matriz original da obra seja o positivo bruto em questão), Beça escaneou os copiões num laboratório gringo fora da grade dos escaneadores hollywoodianos que tem como consumidor alvo famílias procurando uma cópia digital de suas memórias em Super 8. Montando o filme no Final Cut, Beça prova que dar a luz a uma mesmerizante trip sinfônica atonal a base de 16mm (que faz da luz de Recife uma das mais fúnebres arquiteturas projetadas) pode vir a ser um esforço imensamente mais barato que certos editais de curtas que fazem muito menos com mais. O esforço de Beça revela-se não como uma ode conservadora de uma estética enterrada, mas como uma desmistificação do status quo de uma matéria prima que veio a se tornar inacessível/inatingível à doxa dos realizadores brasileiros contemporâneos.
Seguindo da entrevista, assisti à mostra de curtas contemporânea no resistente Cine Vila Rica. Posso confirmar que o espírito do gélido distanciamento do discurso revolucionário audiovisual contemporâneo ainda é algo que se mostra efetivo através de sua política do esgotamento. É na saturação da cadência dos 300bpm fuzilados das imagens e sons multimidiáticos rotineiros que 7FF on¢idia de kk, Andále! de Petter Baiestorf e Landsape de Luiz Rosemberg Filho encontram seu chão. kk é ainda um que chega mais longe com toda a guia do estranhamento do léxico estético audiovisual potencializado pela justaposição de sua iconografia transmutada por todo o espectro da degeneração dos médiuns e abertura absoluta de seus objetos (os comerciais das olimpíadas e seus mascotes, as imagens de manifestações pixeladas ao talo, o 16mm riscado e a transa entre o capital e a fauna representado na cédula e o pós-cédula de uma fria tela de ações de cryptocurrencies).
E como síntese do discurso de todo o evento, foi projetada uma cópia em DCP restaurada ( ̶e̶ ̶a̶l̶t̶e̶r̶a̶d̶a̶ ̶p̶e̶l̶a̶ ̶G̶a̶u̶m̶o̶n̶t̶) e escaneada em 4K de O Atalante do mestre, de obra violada, Jean Vigo. Falar de O Atalante ainda soa como um desafio páreo ao de analisar Os 47 Ronins de Mizoguchi ou Deus e o diabo de Glauber, porque, apesar de serem obras reviradas e dissecadas pela exposição obtusa de uma imensa parte da crítica, estes ainda permanecem em minha memória como um daqueles que fazem parte da pequena lista de filmes que entraram em contato com uma parte de minha humanidade, até então, não muito clara para com minha consciência. Toda a pieguice a parte, a obra de Vigo tem como objeto principal, justamente, um retrato singelo e minimalista do conflito entre o afeto e o ego ao lado da experiência do descobrir e do amadurecer. Com o simples enredo protagonizado pelo casamento de Jean (Jean Dasté como o capitão do Atalante) e Juliette (Dita Parlo) acompanhado pelas desandanças de Pére Jules (Michel Simon) e o menino assistente de bordo (Louis Lefebvre), Vigo faz d’O Atalante um playground para suas disposições de afeto. Algo que fica bem enaltecido no toque dentro do filme, seja nos beijos e carícias do casal após algum desentendimento, no saltar dos felinos ás costas de Pére Jules ou no ímpeto deste toque pela empatia e vontade de cuidar que é condensado de uma maneira absoluta em breves segundos de um momento na cena onde Pére Jules demonstra a Juliette o quão afiada sua navalha é cortando as costas de suas próprias mãos. Dita Parlo prova nestes breves segundos — onde expressa uma sequência de feições que expõem algo para além da angústia, receio, carinho e admiração — que já era uma das atrizes capazes de entrar para os anais da performance. O infortúnio nesta história toda é que, apesar de toda a trajetória de luta pela vida do discurso de Vigo travada por P. E. Sales Gomes, Henri Langlois e todos os pesquisadores e preservadores que esmiuçaram o mar do passado de ataques que a obra de Vigo sofreu pelas alterações e negligências de produtores e responsáveis afins, quem prevaleceu no final foi a versão adulterada da “restauração” comercial da Gaumont que removeu, não somente, especificidades estéticas da obra (como a integridade de grão da película) a procura de uma condição de intocado artificial, mas também, apagou deste novo novo membro do corpo da memória do filme os registros originais que a própria emulsão denunciava à respeito das condições precárias de produção que Vigo enfrentou (dá-lhe os fios de cabelo presos às lentes que foram excluídos em pós-produção no anseio por uma imagem cristalina que não é fiel). Esta iniciativa danosa e irresponsável da Gaumont, simplesmente, não faz sentido algum. Soa como plena burrice e um estado de desconexão para com sua própria audiência. Seu público alvo, além dos próprios preservadores e entusiastas, é uma comunidade cinéfila que não preza pelo intocado, mas sim, pela fidelidade ao corpo original da obra, e isso nem mesmo como um princípio preservacionista, mas quase como uma questão de orgulho para com sua obsessão quase que patológica pelo colecionar de experiências, paralelo ao colecionar de figurinhas originais.
Após o filme de Vigo, foi projetado um dos ( ̶p̶o̶u̶c̶o̶s̶̶) 4 filmes que a mostra conseguiu projetar em acetato. O longa Caveira My Friend de Álvaro Guimarães, considerado o primo eclipsado de Meteorango Kid, é um daqueles filmes sínteses que bate seu pé como projeto de ruptura para com o livro de regras cinemanovista que tanto mantinha-se em voga na transição da década de 1970. Caveira não trata de uma narrativa telelológica em sentido algum, mais como um filme de fluxo livre que encena um espírito daquele momento de forca que o Brasil enfrentava. Uma grande ciranda cênica que trata de cuspir na cara de quem deve com o escárnio merecido. Uma pena que — graças ao status-quo desgraçado da preservação brasileira — uma das únicas cópias 35mm, se não a única, encontra-se com sua trilha sonora completamente defasada, impossibilitando imensa parte da leitura da palavra falada do filme.
No último dia (19) de programação da CineOP debati com Lia Letícia — artista multimídia que estreava na mostra com seu curta Terra não dita, mar não visto — sobre o status quo do mercado audiovisual brasileiro e a predominância de nossas elites intelectuais brancas e seu inconsciente reacionarismo que acredita ser mea culpa revolucionária rimando, o suficiente, com a essência de Ouro Preto, esta cidade construída a base de sangue que é sempre lembrada e consagrada como a cidade mascote do espírito preservacionista brasileiro. Tal consagração traz sempre à luz a beleza e o barroco de sua arquitetura e exoticidade temporal sem nunca afetuar o discurso qual realmente deveria ser acionado toda vez que pensarmos em Ouro Preto. Nos corpos gastos e nos demônios premiados pela história oficial. Ouro Preto não é uma cidade conservada por empatia histórica, Ouro Preto deve funcionar como uma memória inesquecível, um fardo, uma cicatriz em nossa memória coletiva brasileira. Não devemos andar pelas ruas de Ouro Preto com deleite e prazer por conta de seu clima e restaurantes abastecidos por um Jazz gringo, devemos andar pelas calçadas de Ouro Preto com a cabeça baixa, com os olhos apontados sempre aos séculos passados que batem de frente com nosso hoje na corrida do sofrer e do morrer. Apesar de que a política territorial da cidade não parece ter mudado muito nos últimos séculos, bem apontam isso suas margens, suas periferias quase que escondidas aos olhares turistas e seus cidadãos, aqueles que passam as noites frias de Ouro Preto em andanças intermináveis de um excruciante pedir. Mas, sobre isso quem pode falar melhor é a própria Lia que apontou tais questões com exímia lucidez e precisão na entrevista que proporcionou ao Vertentes e, também, com a leveza, peso e poesía audiovisual em seu glorioso Terra não dita, mar não visto.
No encontro de arquivos que aconteceu das 15h às 17h do mesmo dia o debate pegou fogo após o discurso da mesa composta por Angélica Coutinho (Ancine), Secretário do audiovisual João Batista da Silva, André Saddy e Marco Altber (ambos do Canal Brasil). O preservador audiovisual Rafael De Luna, Doutor em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF, ex-Coordenador de Documentação da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e membro fundador da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA) expressou sua indignação com um lúcido panorama de nossa questão ao executar a primeira pergunta do debate “Devo confessar meu cansaço ao, na 13° CineOP, ainda ver discursos que se repetem, o governo brasileiro e a classe cinematográfica que participa do comitê gestor do fundo setorial do audiovisual e do conselho superior de cinema, são e têm sido omissos, negligentes e irresponsáveis com a preservação audiovisual no Brasil, não há outra forma de descrever. Omisso porque não investe e não age. Há dinheiro mas não há qualquer tipo de ação concreta. Neste ano tivemos um projeto de restauração que custou R$ 60.000, no Brasil inteiro, isto foi o que se fez mais efetivamente pela preservação audiovisual com os belíssimos filme do Orlando Bonfim Netto; com investimento ESTADUAL do Espírito Santo. É negligente porque não se interessa, não lê, não estuda e não entende de preservação. Porque falam de preservação, mas, acredito que não saibam o que é preservação. Gostaria de perguntar se o corpo da Ancine e o secretário do audiovisual já leram o Plano Nacional de Preservação Audiovisual que foi feito em 2016. Está na página 153 do catálogo que vocês receberam, que diz, no segundo parágrafo, ‘Por preservação audiovisual se entenderá o conjunto de procedimentos, princípios e técnicas necessários para a manutenção da integridade do documento audiovisual e garantia permanente de sua experiência intelectual.’ Vocês falam de acesso e difusão o tempo inteiro. Isso não é preservação. Muito longe de ser preservação. Se conhecem o plano, por que não implantaram-no até agora? Se não o conhecem, por que não o conhecem até agora? Por que não se interessaram? Fui com diversos representantes da ABPA (Associação Brasileira de Preservação Audiovisual) várias vezes à Ancine e a agência responde que esta não é sua função, não é seu dever institucional, caso a secretaria do audiovisual solicitar pode ser trabalhado dentro da Agência uma espécie de parceria. A secretaria do audiovisual e a Ancine estão na mesma mesa neste exato momento. O que mais falta para se trabalhar em parceria pela preservação audiovisual? Falo de visitas feitas há quatro anos. Aí acredito que é irresponsável, inclusive, porque vemos a Ancine nessa política industrialista preocupando-se em produzir o tanto que se produz sem se pensar no como vai se preservar, justamente, o produzido. Em breve viveremos um apagão, em termos de preservação audiovisual. Se fala muito aqui sobre a era das trevas digitais. O Brasil vai entrar primeiro. Talvez entre sozinho. A Noruega está arquivando em Marte — os presentes gargalham — Não estamos fazendo nada. Digitalização não é preservação. Digitalização é dobrar o problema. Cria-se uma nova matriz e não se pode jogar fora a anterior (analógica), todo este processo de digitalização , então, demandaria o dobro de investimento em preservação. A legislação é, novamente, irresponsável, desta vez, com a educação. Porque, para o professor universitário, se não fosse o Canal Brasil, não haveria nada para exibir entre vários filmes. Ainda bem que há um advogado na mesa, porque eu cometo pirataria o tempo todo. Na minha sala de aula o material é do Canal Brasil, é a única coisa que conseguimos baixar. E o governo não faz nada. Nada desta produção enorme é licenciada para uso educativo. Só gostaria de fazer três perguntas. Conhecem o plano? Se sim, por que não houve, até agora, o esforço em implantá-lo? Se não conhecem, por que não conhecem até agora? E se concordam que têm sido omissos, irresponsáveis e negligentes, e por quanto tempo continuarão sendo?”
Após uma salva de palmas dos presentes, a mesa seguiu afirmando que estamos dando nossos primeiros passos quanto a essa questão, durante todo nosso passado estas questões haviam sido ignoradas por completo. Foram nestes últimos dois anos que uma pequena quantia do fundo setorial foi liberada para a causa. E que, apenas com a notícia desta libração, os produtores audiovisuais partiram para cima da Ancine procurando esclarecimentos, porque estes não pensam, nem mesmo, em si mesmos; no futuro de suas próprias obras.
Acredito que o desabafo de Sylvio Lanna — onde o cineasta expõe o desaparecimento de suas obras após seu retorno do exílio, confirmando que a cinemateca do MAM não tem recursos financeiros para, se quer, disponibilizar um inventário — e a projeção de uma cópia digital precária de Sem essa Aranha de Sganzerla na cerimônia de abertura da mostra (que mais parecia um rip de uma Betamax degenerada) afirmam-se como um retrato bem claro, fiel e sucinto da condição da memória audiovisual brasileira.