Meu Querido Supermercado
A dualidade da forma
Por Vitor Velloso
Durante o Festival de Gramado de 2020
Integrante da Mostra Competitiva Brasileira de Longas Metragens na 25ª Edição do É Tudo Verdade, “Meu Querido Supermercado” é um projeto singular em toda sua composição. O documentário concebe um ritmo de sinfonia em sua metade inicial, como quem filma as andanças de um supermercado que está por vir. Assim, o ritmo é ágil em relacionar essa construção aos diversos trabalhos que estão ali acontecendo. Filma parte desse trabalho, organiza a montagem em torno de um ritmo prosaico, não à toa, a música dá o tom da balada diária, uma tônica que concilia o ordinário ao extraordinário.
Aí está presente uma dialética no movimento da montagem, que é abandonada ao longo de sua estrutura, onde o filme de Tali Yankelevich vai assumir uma característica que o tornará diferente dos demais projetos, uma longa caminhada de entrevistas, conhecendo algumas peculiaridades das relações internas desse supermercado. E é onde a estrutura de sinfonia incorpora na construção à relação de uma espécie de cidade particular, onde seus integrantes são habitantes-protagonistas, no caso da obra e do trabalho ali realizado, assim como indivíduos em um mecanismo único, o supermercado.
Um dos exercícios que o filme se esforça em realizar é um processo de agregar essas relações em uma unicidade o que gera uma falsa impressão de unidade no estabelecimento. E como quem trabalhou em supermercado posso dizer tranquilamente que não existe ali esse senso de comunhão que o filme busca trazer (exceto com o caixa). E é onde mora um dos méritos do filme, ainda que por um falseamento da realidade, conseguir dar essa característica única aos processos de relação das pessoas, onde não há. Tali parece compreender que há, por razões de trabalho, uma segregação abrupta nessa “unidade”, o que ocorre com o caixa, que diz não sentir tédio durante sua jornada, e que esse movimento diário e um fluxo constante de pessoas à sua frente, gera uma inconstância na rotina que lhe é favorável.
Assim, “Meu Querido Supermercado” vai traçando as peculiaridades de cada um de seus personagens, em ambiente de trabalho e sua rotina fora deles, como exemplo um dos atendentes que possui teorias conspiratórias duvidosas, a segurança que é viciada em séries policiais e faz uma abordagem digna de TV e de um julgamento da moral do trabalho, onde começa seu dever enquanto funcionário e onde começa essa vontade de transformar a realidade na obra de ficção que tanto gosta. Esses traços são constantes, não satisfeito, o filme ainda coloca alguns de seus funcionários em diálogo, diante do quadro, quando um de seus personagens diz acreditar que “Goku é maior que Deus”.
O tom desse cotidiano é sempre ditado pela música, que constrói uma certa ironia nesse processo, pois não torna unilateral essas particularidades dos funcionários como elemento primordial pro funcionamento de sua funções, consegue relacionar esse tom “privado” com essa vida no supermercado. Está claro que aqui há um liberalismo explícito ao relacionar essa conjuntura em uma organização quase natural das coisas. Em um dinamismo que lembra um tom orgânico, um esforço que é próprio do filme, pois as relações internas são absolutamente equidistantes e há um processo de hierarquia que está sempre intermediado pelo gerente.
O curioso da obra, é que mesmo com o tom liberal-burguês dessa análise natural do ambiente, esse esforço em tornar público a particularidade de cada um dos funcionários esbarra em outro pilar do liberalismo, essa individualidade crescente, mas acerta de forma tacanha um processo cultural que pode ser analisado por viés materialista, que são essas relações culturais, que mesmo dada colonização, se articulam como processos sócio-econômicos exteriores ao mercado. Mas essa análise fica por conta de fatores externos à obra, que não torna esforço em conceber aquilo que está de fora dessa “unidade”.
“Meu Querido Supermercado” é um documentário singular que consegue conceber algumas contradições internas que apenas reforçam o falseamento na obra documental, acaba derrapando em alguns momentos vergonhosos com a silhueta de uma falta de realidade, onde um de seus personagens, vestido de herói ou vilão de anime, desaparece em fade. Ou mesmo no tom debochado que vai corroendo o fim da obra, uma música que constantemente relembra a versatilidade do discurso cinematográfico em conceber, ou não, a ironia ali presente. E nestas críticas nos lembramos dos reacionários de plantão que se debruçam em falar de “unidade estilística” sem compreender as razões desse discurso em memorandos sociais. A pilantragem corre solta, cuidado.