Reprise Mostra Campos do Jordao

Meu Preço

Um programa inesquecível

Por Fabricio Duque

Semana Vertentes Online

Meu Preço

Para entender a forma como o realizador Hsu Chien filma é preciso invocar seu lado cinéfilo, cujos olhos enxergam a vida como a decupagem de uma imagem, esta que por sua vez detém totalmente o poder do contexto. Em “Meu Preço” (2018), a experiência não poderia ser diferente. No curta-metragem de quinze minutos, nós espectadores encontramos uma trama universal, que pulula o teatro de William Shakespeare, tanto que a frase “A arte é a metamorfose da vida” encerra o filme dedicado à memória de ator Cico Caseira.

“Meu Preço” é também uma imersão orgânica à moda-homenagem de “Querelle”, de Rainer Werner Fassbinder, por transformar o cotidiano coloquial em fábula-conto realista. Um moderno conto de fadas destinado a adultos, detentores da fantasia, ilusão, do fetiche, da pluralidade do prazer corpóreo e sensorial. Embarcamos em um momento específico e presente da vida de Morena Magalhães (o ator Fabricio Santiago, de “Vamos Fazer um Brinde”), uma travesti “loira, linda e japonesa” “saída do cu do mundo” que recebe um “presente”: resolver e se libertar das pendências sôfrego-existencialistas do passado com a possibilidade de uma vingança (um programa “inesquecível” com “mestrado”). Um “prato que se come frio” e na madrugada, onde “todos os gatos são pardos”. Uma sensualizada e popular resposta a la Freud.

O curta-metragem é sobre os inferninhos nossos de cada de dia. Da necessidade de se afundar nas entranhas desmascaradas do mundo. Que se apresenta em neon, com luz artificial no meio a sombras coloridas e com brilhos-purpurina. É o submundo do desejo. O mais obscuro dos quereres. Mas viver essa intensidade (que “depende da força”) é o que faz a vida ser verdadeira, viva, passional e pulsante, entre ecos do poeta maldito Charles Bukowski e o tom caseiro de espaços “econômicos” “botando banca”. “Cala a boca que você só tem uma hora”, diz ao cliente.

“Meu Preço” é acima de tudo sobre o ambiente. Sobre o meio que cuida, salva e oprime. Sobre a hostilidade e defesas do universo Trans, entre poses, confrontos, conflitos, barracos e enfrentamentos-ameaças com navalha, um “presente” do irmão “homofóbico”. Sim, a vida dá voltas. É um jogo de troca unilateral. De saber o que aconteceu representando a blasé poker-face. Corrobora-se também outra característica de Hsu: a de filmar magistralmente e com “tesão” as cenas de sexo, poéticas, excitantes, hardcore e de “22 centímetros”. Pois é, Morena pagou o preço, assim como todo e qualquer ser que resolve investir na própria liberdade humana. De ser plenamente o que é. De renascer das cinzas após situações de violência. De transformar a rus como local de trabalho.

O filme é também sobre a memória. Nós nunca esqueceremos nossos passados, porque é o responsável por tudo que passamos no presente. E com a música “Memórias”, na voz de Valeria Houston (“Saiu com as malas na mão… você nessa mesa de bar que sofre por uma ilusão”), nós somos remetidos a uma epifania desenhada pela estética Kitsch de Pedro Almodóvar e abrasileirada pelo brega-sofrência dos bares puteiros do interior do Brasil.

“Meu Preço” é conduzido pelo puro instinto, aquele que não conseguimos controlar a intensidade. Oscar Wilde já dizia “Só há uma maneira de vencer uma tentação que se torna obsessão: entregar-se a ela com todas as forças e desejos da alma”. Concluindo, nós acompanhamos também a quebra de gênero com a exposição de “machos” em suas intrínsecas verdades, que, confusos e não aceitos, procuram profissionais com “mestrado” para satisfazer suas libertinagens. E assim serem mais homens para continuar “agradando” a sociedade (a mesma que os deprecia como pessoas). Um filme que lança questionamentos com final livre, aberto e continuado.

4 Nota do Crítico 5 1

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