Meu Pai
Um psicológico thriller cognitivo
Por Fabricio Duque
O córtex cerebral é formado por vinte bilhões de neurônios, com seus impulsos nervosos que iniciam e comandam os movimentos voluntários, o entendimento, a razão, esta responsável pela memória, percepção e linguagem. Assim, por mais que se estude a mente humana, nunca se conseguirá traduzir e definir todas as suas combinações e sinapses interligadas. O córtex pode também ser considerado uma metáfora ao gênero Thriller, porque tanto pode ocasionar a fuga da realidade, quanto envolver seu possuidor em um manancial de confusões entre realidade, projeção, desalinhamento da memória e verdade deturpada (do que se acha que se vê). “Meu Pai”, concorrente ao Oscar 2021 em seis categorias, incluindo Melhor Filme, que consegue buscar condução-referência no que foi dito nas linhas anteriores, apresenta-se como um suspense psicológico, em que o “monstro-vilão-inimigo” é a própria mente.
“Meu Pai” conduz o espectador por alterações cognitivas, imergidas de um intimista e familiar estudo de caso. O filme pode ser inicialmente uma metáfora do aceite: desapegar a memória para morrer “melhor” e mais leve, sem a necessidade de encontrar “relógios” e/ou criar distanciamentos sociais por causa da mania excêntrica de se querer estar só. Pode, mas não é. Felizmente. A complexidade desta obra está em sua própria confusão. De nada fazer sentido. E sua maestria está nos detalhes, como a geografia das formas dos armários, por exemplo. Nada aqui é explicado com gratuidade e/ou didatismo. Nós somos convidados a participar das “falhas” cerebrais. De uma Matrix invertida e/ou da estética metafísica de Charlie Kauffman. Tudo pode ser e é, só que com um extra a mais: o de acompanhar perdas das memórias e das verdades. O ambiente do terror aqui é o dentro. E a vítima: a sanidade.
Com direção e roteiro do dramaturgo francês Florian Zeller, (co-roteirizado por Christopher Hampton), “Meu Pai”, adaptação de sua peça para o cinema, é seu longa-metragem de estreia, que não poupou esforços e escalou os atores Sir Anthony Hopkins e a eterna Rainha “The Crown” Olivia Colman. Mas ainda que com dois “monstros” em cena, o filme não é nem um pouco fácil de se enredar, visto que a narrativa acontece minimalista, por sutilezas e micro-reações. Todas essas beiradas são “cozidas” como entrada ao clímax do prato principal. “Meu Pai” é também uma específica perspectiva de como a mente humana pode ser infinitamente criativa e fértil para construir situações e lembranças. Sim, estudos científicos nos mostram que nunca se deve confiar em nossos córtex cerebrais, porque são altamente influenciáveis ao meio externo em que vivemos e à manutenção de nossas idiossincrasias, partes já consideradas únicas e imutáveis. Os dois atores principais citados anteriormente, vivendo na ficção pai e filha, não só conseguem amalgamar com equilíbrio os coadjuvantes, como adentram em outro nível da interpretação: o de ir além, desnorteando o limite com o jogo da naturalização e a espontaneidade de se estar jogando. Tudo aos mesmo tempo, entre dois estágios sem a quebra da quarta parede.
Com tudo isso, “Meu Pai” desconstrói, desalinha e descontinua tempos, espaços e percepções. Poderia até mesmo em certos momentos ser considerado um filme de Jean-Luc Godard. E/ou, talvez ainda mais, Henri-Georges Clouzot. E por que não à estrutura de Roman Polanski e seu “Repulsa ao Sexo”. Sim, tudo pode parecer ser o que pensarmos, fazendo com que a própria obra se adapte e se adeque a cada olhar individualizado do público. “Meu Pai” também não se prende ao esperado formalismo social quando se aborda o Alzheimer. Pelo contrário, o diretor quer o tom espirituoso e tipicamente sarcástico dos ingleses (“Para que ir a Paris, eles falam francês”, brinca com a própria nacionalidade do realizador-roteirista). “O roteiro realmente mostra o que deve ser viver com uma pessoa portadora de Alzheimer, quando há momentos de clareza misturados com outros obscuros”, disse a atriz Olivia Colman.
Para Zeller, Hopkins sempre foi a primeira opção de ator para o papel-central na adaptação de sua peça para o cinema. “Eu tinha a profunda certeza de que Hopkins seria poderoso e devastador no papel.”. O ator confessa que ficou lisonjeado pelo convite. “Foi maravilhoso saber que escreveram o roteiro me imaginando como o personagem. Nesse caso, foi uma honra. E trabalhar nesse filme, me fez pensar em minha própria mortalidade. Foi muito divertido, no set, memorizar as conversas e diálogos. De certa forma, quando as câmeras estavam rodando, nem precisava atuar.”.