Meu Nome é Sara
Pirâmide de Humilhação
Por Jorge Cruz
Sempre que um filme conta uma história real sobre a perseguição aos judeus na Segunda Guerra Mundial, a mistura de sentimentos entre déjà vu e empatia é normal. “Meu nome é Sara” só existe porque vivemos em um mundo que insiste em não olhar para o passado (recente, por sinal) e extrair dele suas lições. A produção norte-americana se inspira na vida de Sara Góralnik Shapiro, judia nascida em 1930, que saiu da Polônia, sua terra-natal, para os Estados Unidos após esconder suas origens enquanto os nazistas ocupavam seu território. Ela morreu em 2018, sem tempo de ver o longa-metragem ser lançado. No Brasil, ele entra em cartaz em fevereiro de 2020, após ser selecionado para Mostra de São Paulo 2019.
A nacionalidade do filme é uma mera formalidade, visto que o diretor Steven Oritt, apesar de norte-americano, imprime uma linguagem mais europeia à obra (se é que se aceita tal classificação). Elementos comuns, como as metáforas de sofrimentos com animais, servindo eles como agentes sensoriais, é um exemplo que podemos citar. Se pauta na linearidade, iniciando a trajetória da protagonista em setembro de 1942, quando ela atravessa a fronteira entre Polônia e Ucrânia na cidade de Korets. Ela pede ajuda a uma família que oferece trabalho de babá dos filhos em troca de comida e um lugar para dormir (não podemos chamar de casa, pois a princípio ela ocupará o celeiro da fazenda).
Dessa forma, o roteiro de David Himmelstein faz da primeira metade de “Meu Nome é Sara” um exercício de construção do sofrimento. A interação se dá basicamente entre três personagens: a protagonista Sara (Zuzanna Surowy, á época com quize anos e muito bem no papel após ser selecionada entre mais de seiscentas não-atrizes polonesas); Pavlo (Eryk Lubos); e sua esposa Nadia (Michalina Olszanska). As relações de poder estão muito bem definidas no longa-metragem, que nos apresenta pessoas que não deixam de humilhar as outras apenas por serem igualmente humilhadas. Essa relação piramidal, tão comum nas interações humanas, é o grande sustentáculo da obra.
Enquanto Sara recebe ordens do casal, Nadia trai o marido, que exerce com muito prazer todos os privilégios do patriarcado. Em uma das poucas sequências fora dos limites da propriedade da família, oficiais nazistas saqueiam (ou melhor, levam pagando um valor irrisório) todo o carregamento de pães que tentam vender na cidade. Sempre que um pelotão bate na porta, Pavlo sabe que sofrerá mais uma humilhação na frente dos filhos e esposa, .
Talvez o que faça “Meu Nome é Sara” fugir do genérico é que, mesmo diante de uma história há muito conhecida, a abordagem territorial permite à obra ser mais do que um filme sobre a Segunda Guerra Mundial. A vivência da ocupação nazista não se dá diretamente, visto que eles pouco saem de casa. É como se a guerra, na verdade, fosse visitá-los de vez em quando. Sem essa urgência do terror vivenciado, há espaço para essas interações familiares internas – o que, de certa maneira, universaliza sua trama. Na questão técnica, não há inovações. A paleta de cores cinza é a mais coerente, mesmo assim é bonito identificar a fuga dessa lógica quando a protagonista frequenta a igreja ortodoxa, para manter sua versão não-judia. O amarelo do ouro e das vestimentas e um roxo mais forte da hóstia molhada no vinho (forma de comunhão que difere essa vertente cristã do Catolicismo), são usados de forma a nos avisar de que ali estamos em um local muito diferente dos outros apresentados.
Inúmeros fatores podem ser deslocados da questão histórica, como a provocação masculina de uma disputa feminina e a possibilidade de redenção de gênero a partir da união entre mulheres. Se por um lado isso amplia as possibilidades de abordagem, multiplicando as temáticas, por outro prejudica a imersão no recorte de tempo e sociedade proposto por Oritt. Há uma escolha no texto de Himmelstein que pode não agradar, criando uma sinergia entre cinema norte-americano e europeu que não funciona da maneira esperada. Quando o texto parece ganhar força, construindo um clímax dentro de um ato ou um conjunto de sequências, somos transportados em uma nova passagem de tempo, carregando o longa-metragem de uma carga contemplativa novamente. Além disso, a opção por ser falado em inglês é outro fator que torna mais difícil essa conexão, apesar de ser todo filmado na Polônia.
Sendo assim, será comum encontrar críticas ao filme pela “falta de ritmo” ou pelo “ritmo irregular”, opiniões genéricas que talvez não sejam materializadas na própria cabeça de quem assim sentencia. Ocorre que, chega em momento, que mesmo essas quebras não são o suficiente para comprometer a qualidade da mensagem do longa-metragem. Sua parte final é densa, não apenas por inverter a roda da humilhação ao encontrar a já dita redenção feminina, na escala possível daquele ambiente. Ou seja, “Meu Nome é Sara” traz uma visão alternativa na questão territorial, permite interações que dramas de guerra costumam não conseguir. Extrai camadas de personagens, aproveitando as poucas chances de desenvolvê-lo. Não acerta em seu ritmo, mas sua força narrativa entrega uma conclusão potente (se vista dentro de uma convenção que evita o melodrama e grandiloquência imagética).