Meu Nome é Gal
O paradoxo do se ir além
Por Fabricio Duque
Festival do Rio 2023
Sim, nós não podemos esperar que uma ficção seja o retrato fiel da verdade, até porque, seu propósito-função existencial reside na liberdade poética de recontar histórias, como um espelho da realidade, que escolhe camadas e pontos de vista. Em uma cinebiografia, especialmente, uma obra pode escolher a abordagem de traduzir vidas famosas pelo afago e/ou pela crítica. O cinema brasileiro quase nunca escolhe o confronto e quase sempre se mantém neutro, indo até o limite considerado confortável. Se na análise do filme “Nosso Sonho”, de Eduardo Albergaria, a opção foi trazer a despretensão criativa e a imersão naturalista das interpretações, aqui em “Meu Nome é Gal”, filme em questão sobre vida e obra da cantora baiana Gal Costa, o tom é completamente o oposto ao se embrenhar pela narrativa de efeito e pelas interpretações que acontecem no campo das ideias, evocando a estrutura de telenovela (inferindo a “Dois Filhos de Francisco”, de Breno Silveira), em que o roteiro se desenvolve por decisões facilitadas e gatilhos comuns, cuja “narrativa folhetinesca, ora linear, ora vertical, busca a zona de conforto tanto do formato típico em se segmentar por núcleos, quanto da interpretação de seus atores, estes que constroem suas personagens no campo idealizado” de como seria ser a personagem importada e internalizada, no momento em que a tímida Gracinha se torna Gal Costa.
Exibido no Festival do Rio 2023, “Meu Nome é Gal”, dirigido por Dandara Ferreira e Lô Politi, chega a ser um olhar apaixonado de suas diretoras, que além de Lô, teve ao lado Mirna Nogueira e Maíra Bühler na escrita do roteiro. Ao potencializar o pessoal (dos gostos), inevitavelmente, qualquer filme perde substância e distanciamento. O “amor” torna-se cego. E o querer da homenagem perfeita, extremamente necessário. Outra coisa que se percebe nesta trama é que parece ser mais sobre Caetano Veloso que propriamente sobre Gal Costa. Há um apagamento da protagonista, “roubado” pelo brilho “London, London”, talvez pelos recursos abordados na montagem, os núcleos picotados, que buscam a atmosfera de uma nostalgia mais metafísica, entre flash de shows intercalados, ruídos nas lembranças e reconstituições de imagens de arquivo de 1966: a área hippie, a ditadura e a coloquialidade de andar de ônibus. “Aqui pode tudo”, alguém diz a Gal (dando a dica para se “soltar”), que até então, um “bicho do mato”, comporta-se puritana e com vergonha de todos. O longa-metragem aqui cada vez usa mais os artifícios populares e facilitados da telenovela para se aproximar do espectador: alívios cômicos; clichês; interpretações ensaiadas, mais sensíveis e bem defensivas; arquétipos comportamentais (quase cosplay como “desenhou” Maria Bethânia, por exemplo, vivenciada por uma das diretoras, Dandara Ferreira).
Ao caminhar na superfície, “Meu Nome é Gal” potencializa um pensamento-tendência que “não há mais atores como antes”, que hoje a embalagem padronizada vende muito mais que seu conteúdo aprofundado. Mais uma vez, a telenovela aparece, porque a sensação que se tem que estamos vendo um caseiro e polite capítulo de preparação afoita e de absorção superficial. Sim, mesmo tendo começado este texto dizendo que a ficção não precisa representar a totalidade da verdade, o filme também não deve ser tão ingenuamente fantasioso. Toda projeção tem base na sinestesia e falta mais “coca-cola, sorvete, cinema e tudo que a gente gosta” quando assiste a um filme. Em um determinado momento de “Meu Nome é Gal”, diz-se “Ou se posiciona, ou morre, tem que ter atitude”. Pois é, esta própria obra cai no paradoxo ao se manter em cima do muro, neutro, de paixão incondicional. Sim, de novo, não podemos esperar consequências documentais em uma cinebiografia, mas o que incomoda é o nível de equilíbrio “chapa branca”.
E muito disso vem de seus atores “que não se permitem mergulhar fundo em seus papéis até o crível encontro à essência comportamental desses homenageados e suas vidas “remexidas” pelo roteiro, soando condescendentes (bem mais comum e esperado, visto que ninguém quer “se queimar”), e/ou pela verdade “nua, dura e que doa a quem doer”. Assim, parece que é acometido a esses atores um medo pela carga-pressão de não conseguir. Isso tudo acarreta não mais o intenso desafio de entrega e sim a facilidade padronizada no mais raso nível, porque na cabeça deles, podem fugir da tradução literal das existências reais incorporadas e por conseguinte descaracterizá-las por completo. A solução parece ser pragmática: “cortar o mal pela raiz”. Para que ter trabalho se o resultado nunca será bom? Não, não é nada fácil o oficio do ator”, parte reproduzida do texto de “Nosso Sonho”. A responsabilidade ficou nas costas da atriz da “Gracinha” Sophie Charlotte, que tenta, mas infelizmente traz muitos “cacos” característicos das novas telenovelas. Para concluir, duas perguntas retóricas ficam no ar: “O que o ator pensa e o que o público quer?”