Maré Alta
Entre águas turbulentas
Por Fabricio Duque
Assistido no Festival do Rio 2024
Há filmes que são realizados com o propósito de participar como um ponto consequente de partida do existencial processo debutante de seus artistas, após assumirem questões importantes sobre suas vidas pessoais. Assim, a arte do cinema serve para dar um simbolismo a essas decisões, trabalhando a aceitação normalizada dessa “nova vida”. Sim, alguns filmes não são só filmes, e precisam sim de um contexto externo, como é o caso de “Maré Alta”, exibido no Festival do Rio 2024, que traz o ator Marco Pigossi como protagonista, que se assumiu gay a pouco tempo numa entrevista-confissão da Revista Piauí, em janeiro de 2022. E que também é casado com o diretor estreante Marco Calvani (também roteirista) deste longa-metragem em questão aqui. Tudo aqui é na verdade um start (um recomeço) após sua “saída do armário”. Talvez, por conta disso, o filme tenha mais em seu DNA, inerentemente, um tom mais pessoal para lidar com questões ainda iniciais ao processo, às vezes até precisando de uma maior liberdade poética do tom ingênuo para acontecer.
“Maré Alta” traz também em sua essência todos os elementos universais (e característicos) do “coming out”, talvez porque todos os medos e anseios do assumir-se parecem ser “normais” ao processo de todo mundo. Há no mundo uma heterossexualidade normativa, que “engloba os machos” num padrão de aceitação da sociedade, como a máxima de “homem que é homem usa azul”. Por isso é tão difícil a revelação à homossexualidade. O homem amar um outro homem é algo que “bagunça” a mente dos mais conservadores, visto que vai além da “brotheragem” e se fixa como “amor livre”. Pois é, duas palavras que incomodam muito. Mas não é só esses problemas que um gay passa. Há outras questões internas. Não somente a ser ativo ou passivo, mas a maior delas: o pertencimento ao novo meio. Como encontrar um grande amor, que seja tradicional e lhe dê rosas? Pois é, a projeção Disney talvez não se enquadre na definição majoritária de ser gay. E assim, novas crises existenciais. Todo gay é promíscuo e só busca sexo casual (e impessoal)? Todas as festas são regadas a drogas? Todos os gays só falam sobre sexo o tempo todo? É, mas alguns não se enquadram mesmo nesse mundo “encantado a la Rupaul” e são, inclusive, as dúvidas de Lourenço, a personagem principal daqui.
Sim, mas como “Maré Alta” fará o “sair do armário” oficial sem os artifícios apelativos “corporais” de suas personagens? Como levar o público que espera encontrar Marco Pigossi pelado? É, o filme não conseguiu fugiu dessa “demanda”. A primeira cena tem o ator-fetiche-objeto completamente nu no mar. Será que foi o suficiente para “cumprir tela-vontade” de sua audiência? Talvez sim, porque o longa-metragem, ao apresentar logo o que as pessoas querem ver, consegue libertar-se da pressão e assim pode mostrar a história objetivada, que é falar de imigração e dores afetivas. Pela condução de ações coloquiais e rotineiras de uma vida cotidiana, “Maré Alta” quer ir além e humanizar o próprio processo mais solitário, silencioso, mais espirituoso, mais contemplativo, mais divertido, mais fluído e menos sentimental, entre a sobrevivência trabalhista de limpar e pintar casas; os bares gays; e os flertes “convites” de outros a fim de um “prazer dele” mais “exclusivo”. Talvez por ser imigrante, um brasileiro tentando a vida (ainda sem documentos) nos Estados Unidos, Lourenço tenha seu olhar mais aberto, mais empático, mais tolerante sobre os outros mais idiossincráticos e “não legais”.
E sim, “Maré Alta”, que traz a metáfora de quando a água está mais próxima ao Sol e a Lua, combinando efeitos da rotação da Terra e forças gravitacionais, também “dosa” sua história com os clichês, como o discurso religioso da mãe, como o sexo sem camisinha (com o PREP e a pílula do dia seguinte anti-HIV), como a objetivação do corpo, como ser bom em “não parecer brasileiro”. Aqui há um quê muito presente e referencial à série “Looking”, sobre os dramas e questões de um grupo de amigos gays, porque este filme também acontece por acasos sortudos, por situações ajudadas, por passantes e por “catolicismos com esteróides”. Daí para frente, “Maré Alta” quer tudo e todas as lutas sociais. Um mestrado falso para o legitimar; as siglas gays; ser negro nos EUA; o gospel religioso, “pecadores e santos”; as “bichas” bem “afetadas”; tem tudo: “bunda cabeluda”, racismo, homofobia, etarismo.
Em uma de tantas entrevistas que Pigossi deu sobre o filme, o ator disse que este é “seu processo de cura”. De ter que viver tudo, experimentar tudo, para só assim saber o que é confortável ou não. “Maré Alta” também pode ser encarado como um filme em busca do gay não padrão “normal”. Para Lourenço, o novo ambiente explorado é superficial, fútil, horrível, de diversão tóxica. Ele quer algo sério e “procurar a vida certa”. Quando se vê perdido, em luto, sem ninguém e numa narrativa não linear, então adentra na revolta, na catarse da perda de controle, na autodestruição, até que uma nova chance o encontre. “Maré Alta” é para ser assim: um filme gay tradicional em processo hipster de indie; um filme estrangeiro, falado em inglês, com um ator brasileiro em “coming out”; um filme que busca aprender no próprio processo de feitura; um filme com Marisa Tomei no elenco; e que ainda precisa amadurecer.