Marcello Mio
Celebração do legado pela personificação
Por Pedro Sales
Mostra de São Paulo 2024
Há 52 anos nasceu Chiara Mastroianni, filha dos atores Catherine Deneuve e Marcello Mastroianni, que também seguiu os passos dos pais e hoje é atriz. A semelhança entre ela e o pai sempre fora notável. Os olhos e o formato do rosto remetem imediatamente ao ator italiano. Com base nisso, o diretor Christophe Honoré propõe uma narrativa delirante e cômica que se vale justamente da proximidade física dos dois para imaginar: e se Chiara começasse a personificar o pai. A ideia de “Marcello Mio” traz, ainda, carga pessoal inerente, uma vez que Catherine e Chiara devem lidar com a memória de Marcello, falecido em 1996 por complicações do câncer de pâncreas. Assim, é interessante imaginar como o cineasta abordou a família para propor esta homenagem ao legado de Mastroianni, que se dá de forma idiossincrática. Atores interpretam eles mesmos nesta fábula psicológica da busca pela própria identidade e pela lembrança familiar.
Tal como Maggie Cheung em “Irma Vep” (1996), Chiara Mastroianni faz uma versão ficcionalizada dela mesma. Em vez de atuar em um remake de “Les Vampires”, aqui a atriz leva a carreira em uma chave automática. Com uma peruca loira e de vestido, em alusão a Anita Ekberg no filme “A Doce Vida” (1960) – em que o pai foi protagonista -, ela entra em uma fonte, emula a cena icônica na Fontana di Trevi. De certa forma, é como se a sombra de Marcello Mastroianni pairasse sobre ela. Primeiramente, no trabalho que remonta ao longa de Fellini e, em segundo lugar, quando Chiara se olha no espelho e vê o próprio rosto metamorfoseado no do pai. Um indício catártico e imagético da conexão e sobreposição de personalidades. Quando Nicole Garcia recomenda à atriz que tenha uma performance mais Mastroianni que Deneuve, é mais um momento que representa isso. Mas se querem tanto que eu seja como ele, assim o serei, estabelece mentalmente a personagem. A partir daí, a obra mergulha nesse jogo interpretativo-psicológico da filha que tenta encontrar si mesma, mas também se ligar ao pai falecido.
A extravagância de Chiara, que passa a vestir ternos como se fosse o pai no set de “8 1/2” (1963) e a falar italiano, é aceita pela mãe, Catherine Deneuve, criticada por Melvil Poupaud e idealizada por Fabrice Luchini, atuando como alívio cômico que sempre quis conhecer o Marcello original. Dessa forma, o humor depreende-se da situação inusitada, da repercussão midiática e de como as pessoas reagem a isso: será apenas capricho dela ou tem algo a mais nessa personificação? Fato é que, o cômico de “Marcello Mio” sai da figura de Luchini e surge também no desconforto e improvável. As dobras e jogos teatrais entre mãe e filha, dotados de grande dramaticidade, fazem o espectador questionar quanto daquilo é de fato atuação entre as duas. Catherine conversa com a filha como se falasse com o próprio Marcello, com direito à discussão de relacionamento e revisita ao passado. Neste sentido, o faz de conta entre as duas lembra um pouco o de “Cópia Fiel” (2010), de Abbas Kiarostami, em que duas pessoas fingem ser um casal de longa data.
A proposta ousada se reflete formalmente em alguns momentos. Na introdução, a sessão de fotos é realizada com uma câmera instável, histriônica, que, de certa forma, parece antecipar a condição de Chiara nesta imitação-da-vida do pai. A decupagem de Christoph Honoré cria planos expressivos na medida em que brinca com os reflexos, cria um tom idealizado no telhado, e encena uma perseguição de Marcellos atrás de Chiara. Apesar dos diferentes efeitos dramáticos de cada cena, em todas o cuidado formal obedece à noção de exagero, que de certa forma pode ser aplicado para o longa em si. Ainda assim, por mais que o histriônico permeie toda rodagem, as atuações, por outro lado, nunca parecem caricaturais demais. Chiara talvez seja quem mais pende a esse aspecto, por ser uma atuação em que ela interpreta ela mesma interpretando o pai. Fabrice Luchini também cai um pouco nisso, mas com efeito cômico que compensa eventuais canastrices.
Portanto, “Marcello Mio” se trata de uma celebração da memória de Marcello Mastroianni com uma essência completamente original. Terno sem ser fúnebre, pelo contrário, com muita vida. A mistura de comédia com as pitadas de drama funciona, com exceção do ato final, em que o público, assim como os demais personagens, fica sem entender. Honoré homenageia os clássicos com Fellini – para além da fonte de “A Doce Vida”, Chiara também reproduz o plano final do longa na praia – e também referencia “Noites Brancas” (1957), de Luchino Visconti. Nesse último ponto, com uma subtrama que não se sustenta muito bem na proposta do longa e destoa do restante da rodagem. Além de ser uma clara homenagem, o filme de Christoph Honoré também remete a uma sessão-de-terapia conjunta, uma forma de relembrar a companhia, como se aninhar ao lado do pai para assistir às patinações. Quando Chiara revive Marcello, todos podem matar as saudades dele, e ela pode se reconectar com pai por meio de algo que os liga para além do sangue: a arte de interpretar.