Mão de Obra
A Ética do Oprimido
Por Jorge Cruz
Durante o Festival do Rio 2019
“Mão de Obra“, do diretor e roteirista David Zonana é o puro suco da crise social pela qual passa a América Latina. Com uma estrutura de três atos no estilo tragédia- aparente redenção-tragédia, o filme peca apenas ao não deixar claro certas representações ao longo do caminho, principalmente as que afetam nossa percepção acerca do protagonista Francisco (Luis Alberti).
O cineasta de trinta anos, tido como um dos mais promissores do México (área do globo mais promissora para exportação de talentos para os Estados Unidos) faz a ambientação do longa-metragem totalmente no terreno onde está em curso a construção de uma luxuosa casa. Seu argumento é o acidente envolvendo o irmão de Francisco. Ele cai do andar de cima da mansão e falece quase de imediato. Zonana escolhe não compartilhar com o espectador os detalhes da tragédia. Até mesmo o homem caindo se dá de forma rápida, para que possamos receber apenas a informação direta.
Por isso, quando “Mão de Obra” avança nos chega a notícia de que o laudo do médico-perito que examinou o corpo e colheu os materiais assim que o óbito foi confirmado concluiu que o acidentado tinha ingerido álcool nas horas que antecederam sua morte. Por outro lado, Francisco estranha a informação, eis que seu irmão não bebia. Exibido na mostra Premiére Latina do Festival do Rio de 2019, em um país onde compartilhamos as práticas de empresas como a retratada no longa-metragem, comprar a versão do protagonista não é difícil. Até porque o texto de Zonana nos conduz para acreditar que a ética não passa perto da construtora, sendo perfeitamente possível a adulteração de um laudo com o poder de gerar a obrigação de indenizar a família os familiares.
Essa condução se dá pelos casos apresentados de salários atrasados e descontos absurdos por parte do empregador no momento de arcar com seus compromissos de pagar os funcionários. Além disso, as condições de trabalho precárias e o ambiente insalubre contribuem para essa formatação de cenário encontrado com facilidade hodiernamente. Em um período de precarização das relações de trabalho, onde a destruição dos direitos da parte mais frágil da relação se encontra com viés de alta, a abordagem dessa produção é fundamental para o debate.
Com a situação definida, “Mão de Obra” se torna um filme cujo objeto é a busca por esclarecimento. Há algo transitando entre a inocência e a desesperança por parte de Francisco. Ele parece não estar sedento por justiça, muito porque no fundo sabe que ele teria que se voltar contra um sistema opressor solidamente instituído. A burocracia estatal, que lhe nega informações básicas, é uma barreira quase intransponível. Conforme as tragédias, perdas e decepções vão se acumulando, esse protagonista se sente cada vez mais incitado a promover justiça social, mesmo que em seu próprio benefício. Há um terreno interessante a ser explorado, quando se observa a criação de uma comuna em torno de Francisco, como se a organização social e comunitária tão comum há séculos voltasse a fazer sentido dada a falta de perspectiva de uma vida digna no médio prazo.
O que tira a força do longa-metragem é que não há avanço de questões e nem de história. Zonana opta por ignorar possibilidades de desfolhamentos, de desenvolvimento de propostas. Além disso, derrapa em uma cena onde não fica claro se houve violência física contra uma personagem ou não. Pode parecer um grão de areia no complexo deserto de uma obra audiovisual, porém essa dúvida acontecer em face do protagonista reveste o filme de insegurança representativa. Saber se Francisco, dentro do contexto que o longa-metragem nos jogou naquele momento, seria capaz de violentar uma mulher não parece ser uma informação a ser deixada em aberto. Não que ele ser capaz disso tornaria “Mão de Obra” pior, pelo contrário, complexificaria o personagem. Só que a montagem do filme faz com que haja omissão, deixando para o espectador a conclusão.
A maneira como o cineasta trabalha sua câmera tem a clássica mistura do cinema latino-americano. Há momentos em que o enquadramento nos faz sentir um voyeur, algo que Anna Muylaert faz de forma brilhante em “Que Horas Ela Volta” e em outros atua como uma câmera-personagem, dentro do círculo de pessoas ativamente, expediente que Bel Bechara e Sandro Serpa utilizam com primazia em “Onde Quer que Você Esteja“, apesar das questões técnicas mencionadas naquela crítica.
Não há como condenar o aproveitamento de oportunidades, como se fosse coerente exigir do oprimido a mesma ética propagada de maneira hipócrita por quem detém o poder. “Mão de Obra“, não fosse essa inconclusão acerca da falha de caráter do protagonista, seria ainda mais representativo, posto que coloca cartas na mesa que urgem por debates construtivos, antes que uma geração inteira morra sem dignidade.