Malu
Mulheres sob influência de seus palcos
Por Fabricio Duque
Assistido durante o Festival do Rio 2024
Os filmes de ficção costumam respeitar os limites entre encenação ilusória da imagem e ações escolhidas-curadas da realidade, representando assim um espelho lúdico do mundo em que vivemos. Só que há obras que conseguem transcender essas regras já normalizadas (consumidas como genuínas) da criação genérica. Essa construção, em forma de “transgressão”, liberta a própria obra de suas “missões” sociais e retrata mais fielmente aos fatos e histórias contadas a personagem abordada, que prefere não seguir o fluxo da maré. São esses questionamentos que a mantém viva, que conserva sua essência mais básica, que a impulsiona a ter esperança e nunca aceitar passivamente a resignação. Um desses exemplos, e dessas figuras que buscaram a revolução pela arte, é “Malu”, estreia na direção de Pedro Freire em longas-metragens, que após passar pelo Festival de Sundance, integrou agora a mostra competitiva do Festival do Rio, saindo inclusive o grande vitorioso da noite com os Troféus Redentor de Melhor Filme (empatado com “Baby”), de Melhor Roteiro, Melhor Atriz coadjuvante (prêmio duplo) e Melhor Atriz. Sim, era de se esperar, até porque o cinema é assim: nós sabemos de imediato quando uma obra tem seu valor e mérito.
Dentro desse processo, ao conceituar a autoralidade da criação, “Malu” constrói a catarse desenfreada pelo tom (sinestesia) instintivo, animalesco e de paixão sem controle de suas personagens, em interpretações de possessões evocativas. O espectador tem uma perturbadora sensação: a de uma entrega sem volta, um salto no vazio à moda de Yves Klein que faz atrizes e atores deixarem de se preocupar com a interpretação e se tornarem as próprias personagens. Muito especialmente por Yara de Novaes (vivendo sua primeira protagonista no cinema) que encarna essa “homenageada temática”, que é a mãe real de Pedro Freire, Malu Rocha, uma atriz de teatro. Corrobora-se aqui em “Malu” o gênero de filme de ator, que nas palavras do cineasta soviético Sergei Eisenstein, em “O Sentido do Filme”, define por “autenticidade da esfera da técnica interior do ator”. “É o estado, a sensação, a experiência sentida, em consequência direta em grau máximo de expressividade”. Sim, um ator deve naturalizar seu personagem a ponto dissociá-lo da própria construção. E essa é a grande maestria de Pedro Freire, de retirar o mais intenso de seus atores, mitigando todo e qualquer resquício da proteção da volta. Yara por exemplo adentra na pausa metafísica, suspende o tempo real para assim alcançar o mais preciso timing da substituição orgânica – a atriz não quer ser Malu, tampouco imitá-la, mas sim experienciar a transmutação quando projeta o próprio ser para se tornar a outra, como num delírio acordado, num lúcido estado de contra-transferência, em que se reflete na vida apoderada que é preciso incorporar. É, não é nem um pouco simples todo esse processo. E poucas atrizes conseguem.
Só que em “Malu”, Pedro ainda consegue a proeza de equilibrar o ritmo da narrativa trazendo mais duas atrizes e um ator, que seguiram o mesmo método do parágrafo anterior. Carol Duarte é a filha. Juliana Carneiro da Cunha é a mãe da mãe. Três vórtices-gerações. Cada uma exprimiu um lado da co-dependência familiar: existir na retroalimentação dos sentimentos tóxicos, mas contraditoriamente confortáveis e cúmplices. Cada uma delas precisa desses estímulos. Funcionam assim. Entre farpas, socos, alegrias desmedidas, feridas ainda marcadas do passado e cuidados paliativos. É o famoso ditado popular do “morde e assopra”. Sim, a essência de toda e qualquer família. Cada uma dessas atrizes recebeu a permissão de perder de vista as redes de proteção. As três (e o “intruso” atravessado, vivido por Átila Bee) interpretaram pelo âmago, pelo “diafragma” e no ultimato de “resolver em vida” as questões angustiantes no momento em que se diz “ação”. Dali pra frente, jogam no espetáculo da própria vida pelas adulteradas existências de seus papéis, que ainda que saibam que é um filme, mesmo assim se entregam como se estes fossem seu últimos trabalhos. “Malu” é um filme de perda total de controle pela construção da ideia iminente de fim de mundo. De finitude. De morte anunciada.
Este filme também é uma ode de amor ao teatro, maximamente representado por sua mãe. Pedro aceitou o mundo que recebeu. Entendeu e processou todas as sombras, idiossincrasias, vontades, desejos, impulsos, competições, emoções, faltas, excessos, loucuras, vulnerabilidades, defesas, jogos psicológicos, verdades em modos absolutos, grosserias, transgressões e revoltas, humanizando tudo como particularidades intrínsecas dos indivíduos enquanto seres sociais. Pedro não deixou nada de lado, porque cada um desses elementos e adjetivos fazem a sua mãe ser o que ela é. “Malu” é um filme de amor. Um filme que não manipula, tampouco muda a personagem para assim fazê-la mais aceita. Isso seria um crime. Uma violação. Ao expor tudo isso, Pedro, enquanto diretor, e realizando uma ficção, convida esse ser materno para possuir toda a atmosfera da obra. “Malu” é também um estudo psicanalítico, de catarse cognitiva, em um intimista tratamento mental de choque. Uma terapia de “encerrar o ciclo” da perda e do luto. De eternizar a memória pelo subjetivo. Pedro deve ter sofrido muito neste processo muito lacaniano. Precisou lidar com a abstinência da mãe, a neutralidade (e distanciamento) da história e “estrangular” a atenção derivativa, flutuante e consequente do resultado final. É, não é nem um pouco fácil isso tudo.
“Malu” é um filme que vive na ação. Que não respira. Que não cria alívios. É uma “porrada”. Desde seu início, com as técnicas preparatórias da personagem principal, sabemos que não se deseja a suavização. O melodrama. O sentimentalismo. A sensibilidade açucarada. É vida real. Imersão para os “fortes”. O que vemos é o cotidiano. O dia-a-dia de uma atriz que mesmo “passada” faz de tudo para trabalhar, porque acredita “que se a atriz não está no palco, ela morre”. E então, para conservar e não acabar, ela faz da própria vida uma peça de teatro. “Malu” precisa disso, entre músicas de bossa nova, que dá um ar de nostalgia importada dos anos noventistas. Pedro segue o conceito de câmera-intimidade, que por atravessamentos da imagem, contemplando ações-reações mais básicas e automatizadas, em um roteiro ultra-mega naturalista. De realismo caseiro. “Malu” é também um filme de cenas, esquetes, ora por monólogos, ora pelo silêncio constrangedor, ora pela caos do barulho. Há um plot sugestivo que talvez explique todo o filme: a desmistificação da romantização da vida. Aqui tudo é consequência natural. Todas as emoções, quinquilharias, objetos-detalhes guardados, erros e até a própria morte, esta visto de forma mais pragmática, com menos carga dramática e “faz mais sentido” (especialmente para a pessoa que sente esses motivos).
“Malu” injeta ânimo, esperança, utopia, crença e futuro. Nós sentimos a força de um desejo “sonho no caos”: de construir um teatro numa área mais interiorana sem asfalto nas ruas, por exemplo. É a paixão pela arte pelas “memórias afetivas”. “Malu” segue polemizando com a “verdade herege” de Malu, como a cena do padre e a “metáfora da criação”, da mãe rechaçando a filha, até o ato de se revidar. Como disse, elas precisam disso: dessa relação cúmplice, fisiológica, patológica, tóxica, barraqueira, “cabeça dura” e co-dependente na loucura, de impulso animalesco, de excitação e depois de culpa, entre “jogos” torturas psicológicas, decisões radicais (e irracionais) e “xixi na rua”, em estruturas desenfreadas, disfuncionais e instáveis emocionalmente de um ambiente “comuna”. “A bromélia para ficar bonita, tem que sofrer”, alfineta-se botanicamente falando, entre outras metáforas “rachaduras”. Tudo precisa ser no limite, intenso demais, exagerado demais e até mesmo “datado demais”, quando “revolta transgressão” vira “grosseria”.
Sim, “Malu” é isso tudo e muito mais. Preciso confessar que eu não queria fazer esta crítica, porque não queria “definir” “Malu”. Ensaiei muito antes de “entrar no palco” por estas palavras. Talvez Pedro tenha sentido isso: uma estranheza de “resumir” sua mãe. O longa-metragem dá dignidade e liberdade à vida e à finitude dessa atriz. É amor, ódio, orgulho, inveja, arrogância e discernimento em deixar fumar, em deixar esquecer, em não lutar mais pela mudança. Ela só queria (e tinha) um específico jeito para ser cuidada. Talvez “Malu” seja a melhor, a mais completa, a mais verdadeira, a mais empática e a mais real homenagem-discurso-epitáfio que um filho pode fazer por uma mãe.