Mais Um Dia, Zona Norte
Os bastidores de uma cidade em movimento
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Brasília 2023
De forma unânime e não questionável, nós podemos dizer que o cinema é um arte muito mais complexa do que se pensa, tudo devido a sua completude de unir imagem, som e todos os reflexos sociais, ora de comportamentos coletivos, ora de caráter pessoal extremamente pessoal e/ou subjetivo. Podemos dizer também que talvez toda a essência da sétima arte esteja mesmo numa organicidade da própria criação, que constrói universos particulares. Sim, esse preâmbulo consegue fazer com que o espectador se ambiente melhor em uma nova obra do realizador brasileiro e carioca Allan Ribeiro, que este ano apresenta seu filme “Mais um Dia, Zona Norte” na mostra competitiva do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.
“Mais um Dia, Zona Norte” é um filme cotidiano, desenvolvendo sua narrativa pela contemplação em movimento das micro ações do dia-a-dia, em que a vida é atravessada pelos ruídos e comportamentos-tipos da cidade. Essa mise-en-scène (com um que de Nouvelle Vague mais editada – talvez pela presença do barulho de passarinhos em uma cena) também encontra reverberação na estética do cinema japonês, em especial, por exemplo, nos remetendo ao novo repaginado (e de visão estrangeira) do diretor Win Wenders, “Dias Perfeitos”, conjugada com a estrutura das obras da Filmes da Plástico, como “Ela Volta na Quinta”, de André Novais Oliveira. E também inferindo “O Homem das Multidões”, de Marcelo Gomes. E sim, tudo aqui parece que quer fugir da ambiência mais acelerada e de corte coletivo de “Rio, Zona Norte” (1957), de Nelson Pereira dos Santos, e focar nas consequências e nas histórias compartilhadas (alguns causos e “encontros de almas”) de se viver em sociedade.
Como já foi dito, Allan filma a cidade em movimento, em um intimista tour de tempo coloquial de absorção, desmembrando a trama de acompanhamento pelo novo coral ao seguir outras personagens. Cada um ali está no “corre”, na sua arte, lutando como “super herói” para não ser “engarrafado”, vendendo discos de vinis em praça pública e/ou provando “delitos” dos outros para proteger seus trabalhos, entre tempos perdidos nos “trajetos contrários”, curtas diversões (da praia e/ou dos passinhos sincronizados em uma pista de dança de funk-charme e/ou dos stories estendidos e percepções de “mais um dia”, deixando o sonho para depois, com data de validade e com hora marcada.
E tudo sem desistir de seus sonhos, das crenças em um futuro melhor e de “conquistar o nosso acesso”. “Mais um Dia, Zona Norte” traz outra questão: a de desconstruir a ideia da obra documental e de ficção. Aqui, o que nós vemos são os bastidores, desnudados de propósitos do ter que se definir para ser e existir. Toda essa fluidez capta muito mais o ambiente, o integrando ao cenário naturalista desse cotidiano, logicamente com a imagem (intercaladas com telas escuras apenas com voz off), montagem (do próprio diretor) e composição musical (também do próprio Allan) estilizadas a um tempo corrente, porém domesticado pela câmera, esta que nos imerge numa genuína sinestesia do nosso olhar e do sentir e num humor inerente de stand up comedy da vida real e seus relatos.
“Mais um Dia, Zona Norte”, que tem argumento e pesquisa de Allan com o diretor Douglas Soares, e produção executiva adicional de Cavi Borges, desenvolve-se pelo tom de fantasia metafísica à moda do realizador Jacques Demy ao confluir números musicais. Tudo aqui é um exercício de linguagem, que ganha força e potência pela presença de suas personagens cativantes. Este longa-metragem quer sutilmente estimular perguntas em seu público: O que faz eles ainda terem esperança? O que os motiva a continuar? Nós somos conduzidos pela própria cidade em ação a um Rio de Janeiro invertido, humanizado, raiz e mais sincero para assim recebermos as camadas, formas de viver, idiossincrasias, perrengues, lutas diárias desses seres que integram a verdadeira máquina do sistema.
Sem eles, a cidade entraria em colapso. São peças fundamentais. As mais importantes, ainda que invisíveis. O gari, o animador informativo de uma loja, o artista que faz tudo, todo mundo respira o mesmo ar, só que de forma hierarquizada. “Mais um Dia, Zona Norte” é uma realista crônica fabular de nosso tempo atual, de nossa geografia, de nossa moderna condição de se relacionar com nossos “próximos”. Este é um filme que nos convida a conhecer o mais puro mundo de pessoas que ainda acreditam que o “mundo é bão, Sebastião” e que “dias melhores virão”. Então, depois de tudo isso, o que podemos fazer? Acreditar também!