Reprise Mostra Campos do Jordao

Maestro

Amor conturbado

Por Pedro Sales

Festival de Veneza 2023

Maestro

O que uma boa cinebiografia deve ter? Atuações com trejeitos dos representados, uma linha do tempo com os principais pontos? Talvez, a resposta para essa pergunta seja um pouco mais complexa do que isso. Em “Maestro“, uma coisa é fato: a clara ruptura com o modelo de cinebiografia vigente. Se a expectativa do espectador é mergulhar na história e obra de Leonard Bernstein, é melhor procurar por um documentário. O ator Bradley Cooper, que tem sua segunda incursão na direção de longas, a primeira foi com “Nasce uma Estrela“, demonstra maior maturidade atrás das câmeras em um drama tradicional que se vale de virtuosismos e de ótimas atuações para retratar as fragilidades de um casal sob holofotes. A proposta é muito mais de uma universalização do drama romântico do que da representação da vida artística de ambos, o que, via de fato, é um abismo para a própria realidade do público.

O maestro Leonard Bernstein (Bradley Cooper), aos 25 anos, tem sua primeira oportunidade de reger uma orquestra. Pouco tempo depois dessa realização, ele tem mais um importante marco na vida, conhecer a atriz Felicia Montealegre (Carey Mulligan), com quem foi casado por um quarto de século e teve três filhos. Portanto, a partir da breve contextualização da sinopse, torna-se evidente que esta é uma obra que foca no relacionamento dos dois em detrimento das realizações profissionais. São poucas as referências ao que Bernstein e Montealegre construíram profissionalmente, uma inferência discreta à trilha o musical West Side Story ou uma curta cena no set. Esta é, sem dúvidas, uma decisão no mínimo ousada, mas que anula a barreira da fama para colocar o humano, as falhas e desafios, no primeiro plano. Pode ser que para muitos, as lacunas e ausências de informações sejam algo que o filme “deixa a desejar”, porém isso é romper com o padrão Wikipédia de cinebiografias, a mera listagem de fatos por anos.

Além dessa preocupação dos personagens como figuras humanas e não tanto quanto ícones inacessíveis, “Maestro” é uma obra marcada por arroubos estéticos de Bradley Cooper, que evidencia bastante controle e perfeccionismo nas cenas. A divisão entre preto e branco digital para o colorido soa como preciosismo à primeira vista. A intenção, porém, depois é justificada. A primeira parte, o passado em preto e branco, é extremamente idealizada, um romance perfeito. Calcado na linguagem cinematográfica dos anos 50 – com direito a movimentos de câmera mirabolantes, exploração de sombras e homenagens a musicais, como “Cantando na Chuva” -, as cenas se desenrolam com a graciosidade de um sonho: a primeira vez regendo orquestra, o beijo no palco. Todo o tom de romance, entretanto, dá espaço ao colorido, e com as cores vem à tona os desafios e desgastes do relacionamento, traições, extravagâncias. Torna-se, então, um recurso estilístico para reafirmar as diferentes realidades vividas por Lenny e Felicia, do romance idealizado ao realismo angustiante.

O único problema dessa dualidade do preto e branco ao colorido é como a mudança no relacionamento soa abrupta. Em uma cena riem sentados juntos no parque, logo depois Felicia flagra o esposo beijando outro homem, reforçando os desgastes entre os dois. É importante dizer que a homossexualidade, ou melhor, bissexualidade de Leonard está evidente desde a primeira cena com David (Matthew Bomer), fica um pouco mais incisiva quando ele o reencontra com esposa e filho e se dirige ao bebê falando que já ficou com pai e mãe da criança. Se em um primeiro são insinuações, depois se torna escancarado. É nesse desafio da fidelidade que a potência dramática reside. Bradley Cooper vive as escapadas e infidelidade sob a imagem de um artista tido como genial. A direção também opta por mostrá-lo à frente das orquestras com movimentos intensos e dedicação total à música, embora isso seja secundário na obra, à exceção da trilha sonora que utiliza composições de Bernstein.

Apesar da boa atuação de Cooper, que muda de voz e adota trejeitos – algo unânime nas cinebiografias -, o maior destaque é para Carey Mulligan. A atriz vai daquele deslumbramento romântico inicial à decepção impassível, para enfim chegar à fragilidade física e emocional. A melhor cena que sintetiza o relacionamento igualmente frágil e conturbado é a do Snoopy. A câmera estática absorve a crescente da briga entre os dois, Felicia diz tudo o que queria há muito tempo mas não tinha coragem ou oportunidade para fazer. Ela reforça tudo o que o espectador já viu, a extravagância, o egoísmo. Nesse sentido, a direção que inicialmente sai da idealização para o realismo, também sai do ressentimento para a redenção, a superação do egoísmo.

Maestro“, portanto, é uma cinebiografia que vai na contramão da onda atual do gênero. A ousadia por si só não teria menor valor não fosse a boa direção de atores, que explora as potencialidades de dois ótimos profissionais, Mulligan e Cooper, que também é o realizador. O drama romântico é efetivo, apesar de tradicional, com um arco de paixão, desgaste e redenção, sobretudo pela forma como o filme se preocupa com Felicia. O amor dos dois, mesmo conturbado é palpável, não é por acaso o último plano, por exemplo. A preocupação estética com a fotografia, muito rebuscada por sinal, é longe de vazia, as cores diferenciam os momentos do relacionamento e os enquadramentos em portas e frestas dizem mais sobre solidão do que muitos diálogos. A ausência de contextualização artística não chega a ser problema, mas também leva ao questionamento: se o objetivo era apenas focar no casal, não poderiam ser personagens ficcionais? Por fim, quando filme tenta às vezes transpor o foco dos dois e da infidelidade é quando tem mais fragilidades, porque eles são a força da obra.

4 Nota do Crítico 5 1

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