Mães de Verdade
A difícil tradução da verdade
Por Fabricio Duque
Durante a Mostra de Cinema de São Paulo 2020
Há uma maldição que atinge a quase todos os cineastas que versam suas obras fora dos Estados Unidos: a de uma tentação em padronizar os filmes com as características estabelecidas do formato americano, considerado um modelo de “sucesso” por “globalizar” o olhar do público sem o incomodar e sem despertar sentimentos ininteligíveis (estes que precisam de tempo e maturidade para se reconstruírem). Infelizmente, a realizadora japonesa Naomi Kawase buscou caminho inverso do independente, acreditando que se colocasse agilidade na edição pudesse assim encontrar uma maior popularidade e aceitação. Toda essa pureza (quase de utopia nostálgica), intrínseca e essencial em suas obras, forneceu lugar a uma quebra da própria cultura ao permitir incompatíveis intervenções mandatórias, como a trilha sentimental com planos mais ingênuos; e/ou a contemplação das árvores pelo tempo de uma piscada. Essa manipulação facilitada, especialmente pela música melodramática, gera um desconforto no espectador, porque se percebe que a cineasta se afasta mais da sutileza orgânica de suas raízes em busca de um “progresso”, que para acontecer necessita estar pululado de gatilhos comuns e de didáticas compreensões. Será esta uma crítica ao mundo moderno que impede silêncios e observações existenciais? Será realmente que o hoje não consegue mais suportar a simplicidade do antes? Será que tudo se transformou em um constante jogo espirituoso de perspicazes sarcasmos? Em seu mais recente filme, com a chancela do Festival de Cannes 2020, “Mães de Verdade” comporta-se como um estético teatro de ações e reações.
“Mães de Verdade”, ainda que traga o olhar nostálgico, que briga com o novo para dizer que existe e pontos narrativos conceituais de tempo e espaço, como a saída da família de casa, busca conduzir seu espectador na universalidade temática da perda-sofrimento versus redenção-aproximação. Quem acompanha a carreira de Kawase irá rebater que em “A Floresta dos Lamentos”, o processo de curar o luto pelo luto é praticamente o mesmo. Não, não é. Tudo porque a ambiência temporal é diferente. Outra época. Neste, a trilha sonora quer sugerir o caminho, como a música sonhadora pop para assim retratar uma atípica mãe que quer organizar tudo. Uma “mãe coragem”. Que “move montanhas” aos desejos do filho “rebelde”. E/ou a câmera na mão, próxima, a fim de criar uma intimidade participativa. Mas ao conceituar e desconstruir a história nós somos imersos em um exercício interpretativo mais forçado de ações ensinadas.
O longa-metragem, exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo 2020, quer também confrontar ingenuidades com a rápida mudança da percepção (planos de câmera que espreitam pela porta podem exemplificar de forma imagética esse sentimento). Pessoas “ganham” status de mesquinhas e “mercenárias”. São parasitas. Referência ao filme sul-coreano dirigido por Bong Joon-ho talvez não seja tão coincidência assim. Será por que o mundo conflua para a própria desistência do outro como próximo? “Mães de Verdade” é sobre a verdade e a semente da dúvida plantada. Empurrou ou não. Acreditar ou não. O primeiro parágrafo deste texto infelizmente aumenta a ideia de ocidentalização. Os silêncios são editados com mais agilidade. Digressões para explicar o passado e ajudar o público a “montar o quebra-cabeças”. E frases de efeito do trigésimo andar “quanto mais alto, mais rico”. Dessa forma, os diálogos são apressados, afoitos, diretos, brutos, como se o roteiro ainda não estivesse lapidado em um “encontro às cegas do óvulo e do esperma”. E ao longo, mais facilidades. A condescendência da mulher que entende a humanidade do marido.
“Mães de Verdade”, que tem roteiro da própria diretora Naomi Kawase, co-escrito por Izumi Takahashi e An Tôn Thât, baseado no romance “Asa ga Kuru”, de Mizuki Tsujimura, adentra em uma armadilha espinhosa. Não é simples naturalizar a simplicidade. Tampouco romantizar o amor. Pode-se cair na pieguice imatura da “jornada de uma vida”. E em mais facilitações do roteiro, que até usa televisão para massificar e “reforçar” o que já está dito e entendido. É sobre a odisseia de uma criança, entre o biológico e o costume. Sobre o sentimental afetado da adoção. “Mãe é quem cria”, diz-se. Há no filme vários filmes em um. Outro começa no processo burocrático de “escolher a criança”. E de novo, a verdade prevalece. A verdade não está só lá fora, está dentro também. Nova digressão com outra personagem completa de uma vez por todas o quebra-cabeças. Sempre com porquês embasados e humanizados, câmeras lentas, cenas etéreas, redenção metafísica, final feliz. “Mães de Verdade” é na verdade uma novela televisiva com moldes estrangeiros. “Por conta do destino, uma vida que não era para existir chega à vida de um casal que não podia ter filhos. Essa é uma história sobre criar o próprio destino, como, se, depois da chuva, uma luz radiante purificasse o mundo. Fizemos esse filme como se fosse uma lembrança de viagem através das estações do ano e personagens de cada lugar.”, é definição que a diretora dá ao seu filme mais recente.