Mad God
Tributo "monolítico"
Por Vitor Velloso
Durante o Festival de Locarno 2021
“Mad God” é uma das experiências mais bizarras do ano. O premiado diretor de efeitos especiais Phil Tippett (“Jurassic Park”, “Robocop”, “O Retorno do jedi” e “Indiana Jones e o Templo da Perdição”) assina a direção de um longa de animação experimental em stop-motion que mais parece um pesadelo coletivo de “Moebius”, de Kim Ki-duk, e Alejandro Jodorowsky. Os primeiros minutos introduzem esse personagem do título, com uma espécie de mandamentos do caos e obediência, onde a morte e a destruição aparecem como a única resposta para a “desordem”. Tudo é muito violento, bruto, sanguinolento e nojento, o mundo (que não necessariamente é o nosso) é representado como um purgatório. Potência bélica que tenta destruir um objeto não identificado e o espectador é levado cada vez mais para um submundo de estranhezas.
Pornografia, assassinato, mídia, fome, tudo é introduzido muito rápido em um movimento estonteante que a animação promove em pouco tempo de projeção. Alguns elementos dão pistas para uma suposta narrativa, onde um objetivo é esclarecido a partir de um mapa, que vai se despedaçando conforme o “protagonista” avança no caos. O esforço de “Mad God” é tentar criar o máximo de estranhezas possíveis em um tempo inicial. Nesse sentido, a obra se sai bem, já que a escatologia se alinha com as figuras indescritíveis que aparecem aos montes, criando uma dimensão que está mais próxima do inferno do que da realidade material em si. Tudo é tão confuso que o espectador suspende a compreensão para se apegar na reação imediata das imagens e das articulações do absurdo, de tal forma que o impacto se torna uma questão reativa-passiva. Nesse ponto, a obra introduz um conceito que vai ser desenvolvido com sua progressão: o tempo. Um relógio anuncia a falha e o ponteiro não completa seu ciclo, é a exposição desse caos para além da própria forma.
A linguagem é articulada em torno de um contraste do próprio tempo, ora acelerando para dimensionar o frenesi, ora cadenciando a duração dos planos para uma contemplação de determinados elementos. Conforme o personagem atravessa um “cenário”, a animação modifica a representação daquela realidade e dá o tom para uma nova fase dessa trajetória. Ao longo do filme as sequências do caos vão sendo incorporadas com imagens da realidade e algumas ideias vão ganhando corpo. Desde o ato espetaculoso da desnudação do personagem diante de uma platéia, que enxerga apenas as sombras em movimento projetadas por uma luz em uma cortina de teatro (lembrando o estupro de “Baixio das Bestas”), até a dissecação que mais parece uma sequência de “Massacre da Serra Elétrica”, com os olhos ininterruptos e o desgaste da película. O rigor plástico dessas construções se assemelham a uma ideia de que o cinema pode ser essa ferramenta virtual da representação enquanto caráter espetacular da realidade, não como a utopia industrial, mas o submundo dos desejos e medos.
Não por acaso, o elemento hierárquico autocrático (Alex Cox) é introduzido como motor dessa história que estamos assistindo, um plano em curso que desumaniza as figuras enfileiradas. O tom do Estado como essa regulação autoritária retorna posteriormente, quando um símbolo Anarquista dá conta de implodir a realidade “falseada”. Vale notar que o próprio objeto de destruição contém a marcação do tempo como fator limítrofe. E essa é a grande deidade de “Mad God”, o tempo. Tanto como ruína, como a representação da criação. A curiosidade é notar que Tippett retorna ao imbróglio da “criação do tempo”, ou seja, o fundamento primordial para o controle e medição. Ainda que não negue a existência da inevitabilidade temporal, para isso, recorre à objetificação dessa medida a partir da imagem do relógio, que aparece diversas vezes, ora como fatalismo, ora como ironia.
Um choro incessante de uma criatura (com o som de um bebê) se encerra apenas com sua morte, dando uma origem a um objeto, que (re)cria o universo, com uma evolução marcada pelo retorno dos ponteiros dos relógios. A passagem é uma série de experimentações visuais, com fluídos, película queimando e uma montagem que vai acelerando e expondo a passagem do tempo através das luzes que mudam as direções e do envelhecimento das coisas. Aqui, as ideias convergem em uma espécie de “criacionismo científico”, como um paradoxo do tempo, Deus da destruição e da criação, fruto de ações realizadas por indivíduos que expandem, ou criam, uma nova realidade, mediada por alguns tributos à “2001: Uma Odisseia no Espaço” (em referências óbvias). O filme encontra em sua experimentação e representação de ciclos (a exemplo da trajetória do segundo personagem) um campo fértil para a introdução de ideias em meio ao pesadelo anunciado, o cinema como a expressão da representação e o Estado perseguindo suas obsessões.
O nível de abstração de “Mad God” é menor do que faz parecer, porém os minutos iniciais formalizam uma hecatombe de bizarrices que suspende a análise de parte do espectador. Conforme avança, o ritmo cai drasticamente, ainda que as ideias ganhem corpo. E é o contraste do impacto inicial com as resoluções dos últimos minutos que ficam mais evidentes na memória, contudo, como tudo está à espreita no purgatório, as próprias deidades não se revelam e o submundo nunca se encerra.
Dá para notar porque demorou trinta anos para ser concluído.