Maçãs no Escuro
Bom para dar azia
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra de Cinema de Tiradentes 2024
O novo filme de Tiago A. Neves, “Maçãs No Escuro”, reforça a ideia de que seu cinema esta em uma rotação a em uma lógica distinta de boa parte da produção cinematográfica brasileira. Com um início cômico e com boa contextualização geográfica, o filme nos apresenta ao Edson Aquino, protagonista da obra e sua vida no teatro, relembrando histórias e criando uma expectativa sobre sua verve artística. Contudo, a direção faz essa construção inicial se desmontar com dispositivos simples e funcionais, como a tradução parcial e equivocada, a câmera fixa no protagonista, gerando uma zona de conforto para o espectador e os diálogos que geram um conflito entre o prestígio e o dinheiro. É uma sequência inicial realmente eficiente em diversos aspectos, mas que a contextualização geográfica e os dispositivos assumidos retiram do diálogo, com um formato mais expositivo, seja uma ferramenta de construção do personagem, didático na oralidade e cômico.
Após o reconhecimento da situação narrativa, Tiago A. Neves consegue manter a comicidade sem perder de vista sua estrutura de rompimentos de expectativa, seja com a suposta festa cara, bem ironizada na cena do vinho, ou no plano que se prolonga para vermos Edson pintando um quadro enquanto todos olham atentos à sua criação, até que ele expõe o resultado para a objetiva. E esse é um dos melhores funcionamentos em “Maçãs no Escuro”, equilibrar a exposição de seus dispositivos com uma espécie de ironia da própria estrutura, que lentamente ganha dimensões mais complexas. É como se o longa fosse incorporando as histórias de precariedade com um descompromisso de estrutura narrativa clássica, que permite o projeto se manter com um referencial sempre em descompasso, mas não de uma forma negativa. Tem haver com a própria lógica de um cinema mais textual, orbitando entre uma iconoclasta dos desgraçados, a romantização da arruaça e a frustração do fazer artístico. Ainda assim, mesmo com esse desenvolvimento na parte textual, a encenação é eficaz em criar um recorte na perspectiva da câmera, sempre focalizando Edson de forma quase unilateral, fazendo graça de sua desgraça e criando esse universo a partir de uma série de fracassos, frustrações e impossibilidades. “Vou colocar esse tênis aqui para ter um pouco de dignidade” é um desses momentos onde a produção consegue trabalhar com a montagem, a encenação e a perspectiva textual sem perder a objetividade da sequência. Esse é um dos grandes diferenciais de Tiago A. Neves, que é capaz de trabalhar de forma múltipla e complexa, fazendo o simples, mesmo que seja, por vezes, incorporando uma camada caótica em sua representação de mundo. Quando o diretor cria pequenos vácuos na sequência de imagens, tornando-se um padrão da obra, ele consegue gerar a noção de uma direção de rumo ou de assunto, mas também quebrando as expectativas para gerar humor. Por essa razão, existe uma imprevisibilidade do longa que chama a atenção, pois é trabalhada em pequenos padrões formais que vão se avolumando no filme.
Contudo, existe uma parte do desenvolvimento da obra que perde algum foco e o espectador pode se sentir a deriva na narrativa, o que pode comprometer o ritmo em experiências individuais. Além disso, de forma geral, o longa se compromete com uma estética tão aguda de precariedade “autoironizada” que pode afastar algumas pessoas de uma imersão mais aguda dessa trajetória. Não por acaso, a recepção na 27a Mostra de Tiradentes foi especialmente dicotômica, com um número significativo de pessoas abandonando a sessão (uma marca da Mostra Aurora) e uma grande porção que se encantou com o projeto. É um desses casos de ame ou odeie, tão comum na Aurora, mas que realmente não chega na Mostra Competitiva a passeio, seja para o bem ou para o mal.