Mostra Um Curta Por Dia A Repescagem 2025 Junho

Lispectorante

Um filme que experimenta Clarice Lispector

Por Fabricio Duque

Durante o Festival do Rio 2024

Lispectorante

O cinema da realizadora pernambucana Renata Pinheiro (de “Amor, Plástico e Barulho”, “Estradeiros“, “Açúcar”, “Carro Rei“) subverte a própria forma criativa do fazer cinema, pelo menos a convencional – a que todos estão “acostumados” a padronizar. Essa cinematografia é mais exemplo dessa arte que manifesta o descontentamento da colonização da arte. Há quem diga que esse cinema, mais orgânico e mais improvisado, ainda que potencialize a estética do olhar, nem é cinema, é outra coisa. Talvez uma experiência de videoarte, talvez um teatro performático em tela e/ou talvez uma revolução-manifesto desconstruída. Sim, pode ser tudo isso quando Renata incorpora e explora as interferências amadoras do cotidiano ao redor, deixando o realismo fílmico mais menos naturalista, mais livre e passível de percepções subjetivas. Se por um lado, essa forma a desobriga seguir regras clássicas, por outro então pode ser um tiro no pé ao conceituar demais sua autoralidade. 

Em seu mais recente longa-metragem “Lispectorante”, exibido na mostra competitiva do Festival do Rio 2024, Renata foca na forma para apresentar sua trama, simulando um universo onírico-fantasioso-fabular-metafísico da escritora Clarice Lispector, pelas performances existencialistas e projetadas do querer ser e estar da personagem principal, encarnada pela atriz Marcelia Cartaxo. A narrativa, com um que presente de câmera mosca, nos conduz pela observação do cotidiano, pela comtemplação-ambiência sensorial do movimento real da própria vida, ora distante, ora muito próxima, e assim assistimos a uma cidade de imagens captadas, num coloquialismo cru de um cinema direto que sai às ruas sem ensaiar o que irá filmar, como a cena de um saco voando, que referencia ao filme “A Beleza Americana”. E que busca escutar as histórias do bairro, os astros e estrelas de Recife, com ou sem imagens de arquivo. 

“Lispectorante” traz a mise-en-scène de uma obra de passeio, de olhares atravessados, como um filme guia de turismo que nos ensina o lugar exato que Clarice Lispector viveu. Há também uma característica muito intrínseca ao cinema pernambucano: a melancolia – uma tristeza por algo que “permaneça na cidade”. Nesta desistência resiliente, esses seres ocultos e invisíveis se manifestam por transes acordados, entre “guerras com rock” e fusões de imagem, e pela mesma sensação da atmosfera do filme “Centro Ilusão”, de Pedro Diógenes. Aqui, a “salvação é pelo risco”. Esse tom fabular mais realista permite que Renata possa “viajar”, bagunçando passado e presente. Será uma “Meia-Noite em Paris”, de Woody Allen, passada em terras recifenses? 

Em “Lispectorante”, nós encontramos uma outra Marcelia Cartaxo sem pudor algum, libertária em sexo casual, entre poetas malditos, “destinos por possibilidade”, casarões abandonados e poemas vendidos, num simulacro conto-de-fadas do espelho que reflete a luz, que evoca memórias (re)modernizadas em uma banca de andarilhos que nos remete a “Berlin Alexanderplatz”, de Rainer Werner Fassbinder. E/ou a orquestra de violinos que acompanha os movimentos dela nesta jornada emocional quase sonâmbula. O filme arraiga assumidamente o discurso pelo excesso, pelo bruto, pela não sutileza, ainda que, como disse, seja uma obra esteticamente imagética. Nesta experiência, mundos, espaços, realidades paralelas e tempos fundem-se a refúgios, portais e proteções à loucura desenvolvida. 

Assim, a mensagem não poderia ser mais clara: o sinônimo à liberdade é se desprender de tudo. Ser andarilho. Deixar para trás toda a burocracia social que cada indivíduo passa para o simples existir no coletivo. Ao simplificar as necessidades, “Lispectorante” nos conduz por um manifesto auto-ajuda de descolonizar nossas próprias vontades. E como um ritual Santo Daime de ser, novos propósitos são ofertados e permitidos a sentir. Este também é um filme que busca estar entre esperas, estendendo o tempo da cena, para que assim, talvez, não cortemos o exato insight-epifania que recebemos. É uma obra que desconstrói o próprio controle. E ao resetar as personagens, nós somos influenciados pelo querer também de deixar ir. “Lispectorante” é um filme de reencontro, de revisitação, de “presente” à mudança, de entender os sentimentos de abandono e solidão. 

“Lispectorante” é também uma ode a escritora Clarice Lispector, uma ucraniana, que mesmo vivendo no Brasil, sempre foi estrangeira. É, quantos de nós, ainda que sejamos locais não compartilhamos a ideia de também nos sentirmos turistas e fora de órbita do cotidiano que habitamos? Uma boa parte da psicanálise, incluindo o argumento do filme “Matrix”, acredita que a realidade que vivemos é uma ilusão, e que usamos a fantasia para conseguir sobreviver. E é nesse tom fisiológico de expectoração que “Lispectorante” busca se traduzir em perfomances e desconstruções da ideia de que nada do que vemos não representa nada no que se é. Sim, o cinema de Renata pode ser essa confusão toda, mas faz sentido. 

4 Nota do Crítico 5 1

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