Limonov: O Camaleão Russo
M de mitômano
Por João Lanari Bo
Festival de Cannes 2024
“Limonov: O Camaleão Russo”, de 2024, traz a baila um dos personagens mais polivalentes que se tem notícia nesse começo do século 21: Eduard Veniaminovich Savenko, nascido em 1943 e morto em 2020, conhecido pelo pseudônimo que adotou no início dessa – digamos – carreira: Limonov, trocadilho entre “limão” e a gíria russa para “granada de mão”. Ele foi (não necessariamente nessa ordem) poeta, romancista, político, jornalista, guerrilheiro, assaltante, prisioneiro, laranja, mulherengo, fascista, stalinista, punk, dândi, indigente – you name it, diriam os incrédulos.
Kirill Serebrennikov, o talentoso e profícuo realizador que se aventurou nessa seara cheia de cascas de banana, definiu assim seu personagem: para mim, ele era um coringa russo. Uma pessoa com várias faces que morria e renascia diversas vezes em um novo corpo, ambiente e nação, começando uma nova vida a cada vez. O filme é uma (vaga) adaptação do livro “Limonov”, do jornalista-escritor francês Emmanuel Carrère, publicado em 2011, traduzido no Brasil. Ao contrário, hélas, das dezenas de livros escritos pelo próprio Limonov, nunca publicados por nossas editoras. Nem mesmo o primeiro romance escrito em Nova York, “Sou eu, Eddie”: o manuscrito ficou pronto em 1976, foi publicado em Paris em 1979 – a conselho do poeta Yevtushenko, que deu o toque decisivo: vá para a França, lá vão te reconhecer (a cena está no filme, quando Limonov atuava como dedicado mordomo de um milionário solteirão no Upper East Side). Fez as malas e partiu para o velho continente.
A passagem de Limonov por Nova York, inicialmente acompanhado por sua mulher Elena, é apoteótica, em todos sentidos: como notado por muitos críticos, é um clima de corrosão e euforia simultâneas que nem a imaginação de Charles Bukowski seria capaz de elaborar. Se Limonov foi de fato um mitômano, esse fragmento de sua vida é um dos pilares de um autoengano monumental, ou de um monumental esforço de autopromoção (provavelmente dos dois). A produção de “Limonov: O Camaleão Russo”, que levou quase cinco anos e foi interrompida pela invasão russa da Ucrânia, recriou as ruas de Nova York em um estúdio de Moscou. É o ponto alto do filme: Limonov, um dissidente-punk do império soviético, imerge no mundo amoral e sexualizado em todas as direções da rua 42 novaiorquina, na era pré-aids.
Carrère conheceu Limonov no início dos anos de 1980, quando o escritor se estabeleceu em Paris, na esteira do sucesso do livro de estreia, “Le poète russe préfère les grands nègres” – título da edição francesa para “Sou eu, Eddie”. Limonov sacou o verniz cultural parisiense num piscar de olhos – se vendeu como exilado da URSS, mas desdenhoso dos reverenciados dissidentes Alexander Soljenítsin e Joseph Brodsky, ambos ganhadores do Nobel (em Nova York faz sexo anal com Eleonora enquanto Soljenítsin fala na televisão). Em Paris, durante entrevista radiofônica, ridiculariza a literatura, elogia Stalin e dá um soco em um de seus interlocutores – outra sequência de destaque, com Sandrine Bonnaire como entrevistadora. Desaparece da cena parisiense e reaparece em um documentário da BBC segurando uma metralhadora ao lado das tropas sérvias comandadas por Radovan Karadzic, o “carniceiro dos Balcãs”, culpado por dez crimes contra a humanidade e sentenciado pelo Tribunal Penal Internacional a 40 anos de prisão.
A incursão nos Balcãs não entrou no filme de Serebrennikov, por absoluta falta de tempo. Impossível dramatizar todos os momentos dessa vida tão intensa em um longa-metragem – talvez em uma série, mas aí o risco seria cair numa mesmice Netflix. “Limonov: O Camaleão Russo” acompanha seu personagem na volta à Rússia pós-queda do muro de Berlim, em uma prisão na Sibéria (ele se gaba de ter sido o único “intelectual” detido durante e depois do comunismo). Seu livro de estreia foi traduzido em 1991 no país natal e vendeu mais de um milhão de exemplares. É uma referência, principalmente, para os jovens escritores russos. Limonov não se abalou: Sim, isso dizem. Não sei. Acho que eles querem um pouco da minha glória, mas não faço isso por dinheiro, e eles sim. Tentam me imitar, mas não conseguem.
Em 1993 funda o Partido Nacional Bolchevique, organização de oposição que combinava traços de extrema esquerda e extrema direita, uma espécie de clube skinheads neo-punk — provocação, como sempre, mas também uma forma de arte performática. Limonov se comportava como um astro do rock, se autodeclarava russo-fascista e editava um jornal na tradição antiocidental muito lido, Limonka, informa Serebrennikov. O diretor considera seu personagem uma metáfora da Rússia – ou seja, um pouco romântica, excessivamente anárquica e nem sempre clara em suas intenções.
Limonov nasceu na Rússia, mas foi educado em Kharkov (nome russo), atual Kharkiv (nome ucraniano). Foi lá que se destacou como poeta underground. Em 2014, apoiou a conquista da Criméia pelo antigo desafeto Putin, que ele criticava: Putin era um ‘playboy’, mas entendeu o peso do Estado russo. Se estivesse vivo, certamente seria um entusiasta da invasão da Ucrânia.
Kharkiv, perto da fronteira com a Rússia, é alvo constante de mísseis e drones. Em abril de 2024, quase um quarto da cidade havia sido danificada ou destruída.