Levante
A expressão artística pela autonomia de nós mesmos
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Cannes 2023
Não, não é nem um pouco fácil conduzir um filme pela naturalidade criativa. evocando uma resposta emocional genuína no espectador pela fluidez comportamental de sua narrativa. Isso na verdade chega a ser um exercício-desafio. Mas quando uma obra consegue incorporar elementos mais autênticos, mais espontâneos e mais coloquiais e que evitam a sensação pretensiosa de artifício teatral, o resultado obtido então é genuíno. É tudo uma experiência entre ações e reações, alcançada por meio de diálogos convincentes, atuações sinceras, roteiros bem escritos e técnicas visuais que reforcem a sensação de realismo. Sim, um desses exemplos é “Levante”, longa-metragem estreante de Lillah Halla (ela/dela/elu/delu – seus pronomes). Exibido na 62ª Semana da Crítica do Festival de Cannes 2023, o filme reitera o preâmbulo deste texto por explorar a originalidade e a expressividade artística.
“Levante” é uma crônica intimista social, que quer nos mostrar que nós, indivíduos coletivos, vivemos em um mundo novo do gênero neutro contra os argumentos arcaicos do passado. As questões identitárias desse agora atravessam pré-conceitos enraizados do senso comum. Assim, travestis, heterossexuais, não binários (e até adolescentes que jogam volley) conseguem convivem juntos e misturados em liberdade, sem que precisem se policiar o tempo todo para não serem agredidos apenas por se comportarem como o que já são. Mulheres podem ter controle absoluto de seus corpos e escolher se querem ter filhos ou não. Sim, nós sabemos que não é assim nas duas últimas frases. Essas ideias de meio de vida perfeita ainda são utópicas. E é isso que “Levante” deseja trazer em sua mensagem. De que a luta continua. De que cada uma das personagens tem que ter atitude. Tem que brigar por seus espaços. Tem que ser afrontosa, impositiva, repetir mantras auto-ajuda e dominar o território em que está. Tem que escolher ações mais radicais para se “manter no jogo”. O filme mostra que algumas delas inclusive precisam roubar farmácias.
“Levante”, que cria conexões inferências com o filme “Meu Nome é Bagdá”, de Caru Alves de Souza, e, inevitavelmente, ao romeno “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias”, Cristian Mungiu, quer também a desconstrução de gênero e expôr essas mudanças ao público, como a cena naturalista da nudez no banho. O filme nos lança perguntas: Por que mulheres não podem ter cabelo nas axilas? Por que homens não podem pintar unhas? Quais são os parâmetros para mensurar a masculinidade e feminilidade? Aqui, a narrativa nos conduz por dentro. Pelo individual antes do social. A protagonista preocupa-se com a menstruação, com a possibilidade da gravidez e com as consequências disso tudo, que a atrapalhará “jogar fora a oportunidade” de ser escolhida para uma seleção de volley. Nas paredes sabemos que lá fora há eleições gerais. E há mais: sua desconfiança ainda vive no panorama extremamente conservador de um governo impositor de regras políticas, pautadas exclusivamente no maniqueísmo dos valores familiares. “Levante” agora busca o conflito, não só de nossa protagonista, como a da audiência, que é levada a discutir questionamentos moralistas-religiosos. Ela, pelo desconhecimento, procura formas de salvação no google. Sente culpa e o medo da punição. Tanto de Deus, quanto da exclusão de seus próximos. Sente vergonha e sente olhares julgadores de todos a seu redor.
E assim, “Levante” adentra outra seara: a de ser um filme de esclarecimento social. De utilidade pública. De esperar uma legislação mais humanista e solidária. E que tenha um serviço específico a essas mulheres que não desejam ter filhos. De conscientizar a população a não procurar clínicas de aborto. De não precisar ir até o Uruguai porque lá o procedimento de interrupção é permitido.De não potencializar a culpa emocional-psicológica quando ouve que “fetos já têm pálpebras”. Chamar ou não de bebê? “Por isso é tão importante legalizar o aborto”, diz-se, entre simbolismos das abelhas e impulsos desesperados de “resolver tudo logo”. Sim, nós conseguimos captar todo o tom sensorial impresso em “Levante”. Sentimos as angústias e os medos das personagens. Nós percebemos o quão tóxico e fatal é não falar abertura sobre aborto. Um tabu que atravessa tempos e tempos históricos. Mas nós nos acalmamos por um momento quando encontramos obras como essa, feita por mulheres em ação, logicamente, por sentirem nas próprias peles todas essas limitações. Assim, “Levante” é uma carta feminista de libertação. Um estudo pessoal político à urgência do agir. É um manifesto em favor de uma vida que não mais se preocupa com que o outro é, apenas com sua presença-espectro em uma sociedade que alguém definiu como certa e a ser seguida.