A margem à espera de humanidade
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Cannes 2019
Exibido na mostra competitiva a Palma de Ouro do Festival de Cannes, “Les Miserables”, do diretor francês Ladj Ly (que “decupa as realidades da vida social e política é um estudo de caso sobre o cotidiano xenófobo mascarado de politicamente correto (apenas à frente das câmeras). Suas personagens, nesta fábula realista de um dia, “ganham” a possibilidade da mudança, ainda que em situações de choque, fazendo com que o espectador em graus diferentes infira ao racista policial (que precisa entender a malemolência das investidas e não simplesmente rebater com agressividade, achando que o grito cessa a baderna) do filme “Três Anúncios Para um Crime”, de Martin McDonagh. Mas aqui a redenção acontece por outros estímulos mais próximos à revolução de Ken Loach e com que de Grace em “Dogville”, de Lars von Trier.
“Os Miseráveis”, tradução literal ainda não oficial e sem data de lançamento no Brasil, reverbera o escritor Victor Hugo, e nós espectadores, também participantes deste mundo em modificação constante, percebemos que a obra literária comporta-se altamente moderna e atemporal, como uma análise comportamental. Sim, talvez o mais difícil seja compreender e respeitar as idiossincrasias intrínsecas do ser humano, que é consumido, influenciado e transformado pelo meio em que vive.
“Les Miserables” conduz sua narrativa pela estética do novo cinema, que é imergir despertando a sinestesia, aguçando sentimentos e reações a um sensação desesperadora e primitiva, nas verdades mais obscuras reinantes livremente nos inconscientes mais subalternos. A câmera é próxima, direta e urgente para captar o existencialismo da imagem e o coloquial cotidiano de pequenos prazeres e músicas esperançosas.
O filme é sobre a paranoia crescente. Sobre o medo que incutimos. O outro, a pessoa próxima a nós, tornou-se nosso inimigo real, quase literalmente um “inferno” na máxima do filósofo francês Jean-Paul Sartre. Há também perguntas provocativas e questionadoras pairando no ar (que mais propicia uma reflexão que uma resposta propriamente dita): qual o verdadeiro propósito da vida? Abrir mão das próprias vontades por menores que sejam? Qual o limite da felicidade? Quebrar coisas em um evento popular? Viver é participar de um estágio controlado todo o tempo e nunca desligar quanto às questões sociais?
“Les Miserables” quer inserir o espectador na ação do momento (preâmbulos estendidos), como se fosse um documentário do comportamento social de vidas passantes e continuadas (o jogo de futebol, a sobrevivência ao mundo capitalista e material, a troca de geografias por almejar um melhor lugar para ser e estar a luta de classes, o querer do aumento do poder como indexador, a importação dos costumes religiosos – muçulmanos), perdidas nas expectativas do mundo moderno, entre franceses, ciganos, radicais intolerantes e os com mentes mais abertas. O ser humano não é mais recebido e sim analisado por seu passado.
É um filme que se posiciona na ação, totalitária e imersiva, para assim potencializar a sensação de violência, intimidação e poder de seus policiais com seus “comportamentos inadequados” (que trocam insultos e apelidos cúmplices, como Backstreet Boys), funcionários públicos que deveriam monitorar lugares considerados mais perigosos (como o mesmo em Paris que foi escrito por Victor Hugo – um “fato cultural”), proteger pessoas (especialmente os “ilegais”, aqueles que habitam à margem da sociedade) e garantir seus direitos constitucionais do ir e vir “contra a brutalidade do mundo”. E não pensar que “simpatia” automaticamente desencadeará “abuso”.
“Les Miserables”, que pode ser divido em três partes (retrato documental de um mega evento; o desenrolar da trama potencializada nos conflitos; e cena final, uma sequência revolucionária black bloc, com um que de “O Resgate do Soldado Ryan”, de Steven Spielberg, com “The Square”, de Ruben Östlund), é também uma análise de caso sobre a causa de uma guerra, em que uma simples e a mais corriqueira ação pode mudar e movimentar todo o equilíbrio. Eles são os miseráveis, primitivos, esquecidos, distantes da redenção e “brincam” com o que têm. E entre drones filmados, em uma tomada área de ambientação, e circos, tudo é uma aula de humanidade, condensando múltiplas questões sociais e camadas psicológicas com o intuito de construir um panorama intimista do agora no mundo. Pode soar como uma sucessão de clichês? Sim. Mas bem executado, elementos óbvios acrescentam ao invés de apenas ilustrar.