Legado nos Ossos
Escalada ao Sobrenatural
Por Daniel Guimarães
Netflix
Nunca deixa de ser interessante a escolha de abordagens em obras para explorar o sobrenatural. Nos diversos gêneros em que é praticado, o terror é evidentemente o que mais se sobressai nessa temática. Dentro da própria convenção, porém, há ainda infinitas formas. “Legado nos Ossos” parte do thriller policial característico em David Fincher (Se7en, Zodíaco, Garota Exemplar) para, pacientemente, ir em uma crescente ao bizarro, desconhecido e espantoso.
O novo longa-metragem espanhol da Netflix, dirigido por Fernando Gonzáles Molina, acompanha a inspetora Amaia (Marta Etura) na cidade de Baztan, na Espanha. É o segundo de uma trilogia que conta com “O Guardião Invisível” e o ainda a ser lançado “Oferenda à Tempestade”. Em cada um dos filmes inspirados na série literária “Trilogia Baztan”, da autora Dolores Redondo, os crimes e investigações são independentes, embora sigam uma linha cronológica. Aqui, Amaia precisa investigar uma série de suicídios suspeitos que deixam a mesma mensagem escrita em sangue: “Tartalo”.
O princípio é de um thriller conhecido, da investigadora em meio ao frenesi de seu trabalho, em dificuldade de conciliação com sua vida pessoal, sobrando pouco tempo de atenção para seu marido e recém-nascido filho. Entretanto, quanto mais se avança na investigação do principal mote, a trama se aproxima estranhamente da vida particular de Amaia, assim como de cultos e seitas. “Legado nos Ossos” escala ao terror e o assume quase integralmente. Sua estética se destaca nesse sentido, visto que o sobrenatural de bruxas, magias e misticismo não são explícitos, mas a composição de atmosfera, sem dúvida, soa como se estivéssemos assistindo um conto medieval. É perceptível como as lendas e o místico estão sempre a espreita, com personagens secundários citando fábulas, discutindo a origem do mal, a religião ou experimentando vibrações na aura de pessoas. Mesmo que nunca chegue a uma catarse performática e visual como “A Bruxa”, aqui se busca a apropriação dessa estética, mas em forma de contenção, se aprisionando ao “real” e material. A sensação a partir de certo ponto é macabra, mesmo a imagem não necessariamente sendo.
Em sua trajetória, é impossível não recordar a primeira temporada de “True Detective”, produção da HBO que justamente explorava as percepções humanas, suas experiências e seus medos ao se aproximarem do irreal, em meio a um thriller policial. Mesmo em seu visual se assemelham. O ambiente de uma cidade pacata e não tão urbana, a iluminação quase que melancólica, voltada para um amarelado, fugindo do claro e do vibrante, como ao dizer que algo estranho está a espreita nas redondezas.
De ritmo devagar e paciente, os elementos do filme se encontram em sincronia, no objetivo de criar clima e atmosfera em unidade estilística para uma escalada do suspense ao terror, do real ao sobrenatural. A estética e a estrutura nesse estilo narrativo, quando se encontram no mesmo compasso, possuem a chance de chegar mais longe que qualquer susto arbitrário. Aproxima-se do medo genuíno, o de gerar o desejo, em agonia, que certas cenas acabem o mais rápido possível. Em “Legado nos Ossos”, há pelo menos dois momentos que, se contendo e não necessariamente exibindo o mal, consegue se gerar o frio na espinha.
Se o filme se desenvolve com independência em relação ao primeiro, porém, o finaliza como uma série de TV. Nenhum problema em estruturar um arco narrativo que se conclua em mais de um filme, mas cada obra deveria fechar suas próprias histórias, deixando pontas para um prosseguimento do próximo. Aqui praticamente se apropria dos ganchos característicos em finais de episódio para não concluir seus principais temas, exibindo algo como um “continua no próximo capítulo”. Também a tentativa de dramatizar a incapacidade de Amaia na conciliação de trabalho e família parece algo pertencente a uma outra ideia de filme, nunca explorando qualquer particularidade. Tais momentos aparecem majoritariamente presentes como transição entre uma parte da investigação e outra. A aproximação de sua vida e história familiar na elaboração do horror é intrigante devido a estranheza do obscuro que “Legado nos Ossos” trabalha, mas sua relação amorosa não encontra lugar.
Envolvendo o mistério e o desconhecido em forma de suspense policial de investigação, “Legado nos Ossos” encontra maneiras surpreendentes de, na cidade com detetives, elaborar sensações que são despertadas através de contos e fábulas de bruxas em meio a florestas.