Leaving Afghanistan
É fácil começar uma guerra, mas ninguém sabe como terminá-la
Por João Lanari Bo
Festival Internacional de Shanghai 2019
“Leaving Afghanistan”, que Pavel Lungin dirigiu, entrega o que o título promete: uma saga sobre os últimos dias da aventura soviética no combalido Afeganistão, permeada de traições e equívocos. Não é sem ironia que o filme, lançado em maio de 2019, experimenta um refluxo nas plataformas de streaming, dada a desastrada saída das forças dos EUA de Cabul, exibida online em escala global poucas semanas atrás. Em uma decisão cheia de hesitações, Brejnev autorizou a invasão do Afeganistão em dezembro de 1979: já estava fragilizado da doença que o mataria em 1982, quando o trio de pesos-pesados Andropov, Ustinov e Gromyko – respectivamente, Chefes da KGB, das Forças Armadas e do Ministério das Relações Exteriores – tentou forçar no Politburo, em março de 1979, a decisão de intervir militarmente no Afeganistão. Quando informado da decisão, Brejnev a vetou, argumentando que não queria estragar sua próxima reunião com o Presidente Carter em Viena, em junho, no qual esperava assinar o Tratado de Controle de Armas SALT II. Mais tarde, naquele ano, quando as perspectivas de melhoria nas relações EUA-URSS diminuíram, os três tentaram novamente: desta vez Brejnev aquiesceu. Afinal, o Afeganistão se afundava em mais um ciclo de corrupção e golpes políticos, representando um “foco de sério perigo para a segurança do Estado soviético”, logo ali, na fronteira sul. Tratava-se, em última análise, de “defender toda a comunidade socialista e os valores do socialismo”. Finalmente, em janeiro de 1988, Gorbachev anunciou que a União Soviética retiraria suas tropas do país, em maio do ano seguinte, independentemente das consequências.
Hoje, com a distância histórica, sabemos que a invasão foi um trágico erro de cálculo, uma das razões da queda da própria União Soviética. Pavel Lungin é um excelente diretor, e não é exatamente um pacifista: em 2014, assinou carta aberta de apoio a Putin sobre a intervenção militar da Rússia na Ucrânia e na Crimeia. Mas “Leaving Afghanistan”, baseado nas memórias do General Nikolay Kovalyov, agente da KGB na frente afegã entre 1987 e 89 – o general procurou o cineasta para convencê-lo a adaptar a história – acabou revelando-se um filme altamente crítico da intervenção soviética, retratada como uma sucessão de erros e omissões em que ninguém, dos soldados aos comandantes, parecia ter ideia dos reais motivos que levaram ao conflito. Ações militares são compulsões e espasmos da virilidade masculina – qualquer semelhança com o que ocorreu no Vietnã não é mera coincidência. A escritora Svetlana Aleksiévitch, a partir de depoimentos de combatentes, médicos e parentes próximos, escreveu um livro demolidor sobre o assunto, intitulado “Meninos de Zinco”: pergunta-se ela, “o que é bom? O que é mau? É bom matar ‘em nome do socialismo’? Para esses meninos as fronteiras da moralidade são traçadas por uma ordem militar.” O zinco do título faz referência aos caixões que transportavam corpos dos abatidos na guerra (cerca de 15 mil ao longo dos anos). No filme de Lungin, o General Kovalyov é representado pelo Coronel Dmitrich, sempre de jeans e penteado no limite do frívolo, ponderado e contemporizador – “você precisa negociar, não brigar”, era o seu lema. Os militares aguardam a desmobilização, os oficiais refletem ansiosos sobre a aproximação de uma vida pacata: não está claro o que está acontecendo na pátria – o Partido Comunista está se desintegrando, a juventude está ouvindo rock, as meninas estão usando meia arrastão. Todos estão tentando ganhar dinheiro e levar para casa alguns souvenirs – um gravador japonês, um casaco de pele de carneiro, uma faca afegã. A população local, sobretudo aqueles leais ao invasor, não sabe como viverá depois que o aliado partir. Emboscadas e guerrilheiros mujahidins, que agem como sombras, estão à espreita: qualquer opção de trilha ou escape pode ser a pior.
Em um roteiro que sugere uma descida inelutável ao caos – não havia alternativa realista para a retirada do contingente soviético, de 100 mil soldados – a âncora narrativa é o piloto que conseguiu se ejetar do seu jato, derrubado por equipamento cedido, é claro, pela CIA: seu pai é o comandante da 108 divisão de blindados, a última a sair do Afeganistão. Os afegãos prendem o piloto, a quem se junta um corrupto e desonesto sargento, capturado por vender aos guerrilheiros – e não entregar – um lançador de granadas. A negociação para obter o piloto de volta mistura-se à negociação pela rota de saída: nada está garantido, o inimigo é fragmentado em tribos que lutam entre si há séculos, muito antes de se tornar um Estado-tampão entre a Índia Britânica e o Império Russo no final do século 19 – configurando um país que ficou conhecido como “cemitério de impérios”. “Leaving Afghanistan” pode ser resumido em um dos depoimentos colhidos por Svetlana, de um sobrevivente:
Tínhamos saído durante um governo que achava a guerra necessária, e voltamos num governo que achava a guerra desnecessária. Nosso socialismo desabando, já não tínhamos condição de construí-lo numa terra longínqua.