Lampião, Governador do Sertão
As perspectivas de uma suposta contradição
Por Vitor Velloso
Durante o Festival É Tudo Verdade 2024
A controversa figura de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, sempre foi objeto de interesse por parte dos cineastas, não só pela sua complexidade política e social no debate público, mas por suas representações na cultura popular, uma base mística que foi construída em torno de sua figura e claro, a velha pergunta:Lampião foi um heroi ou um vilão? Entre as diversas perspectivas que devem ser levadas em consideração para debater seriamente, sem criar polarizações tão drásticas e que encerram qualquer possibilidade de debate sério, “Lampião, Governador do Sertão” assume um retrato que procura simplificar o caráter político da figura, mas tratar de sua imagem como um símbolo regional.
Dirigido por Wolney Oliveira, que também dirigiu o problemático e importante “Soldados da Borracha” (2019), o filme inicia a partir da dicotomia entre herói e vilão, além de trazer um conflito de depoimentos que assumem diferentes origens para o personagem. Um ponto em comum é a questão de um conflito que um morador local e a necessidade de defender sua terra. E é justamente essa a grande particularidade no debate sobre o Lampião, em seu caráter político, que o longa não está interessado, seu conflito com o Estado e a questão da desapropriação de terras. Nesse sentido, “Lampião, Governador do Sertão” não procura debater as possibilidades de discussão quanto à posição de Lampião nesse debate, se distanciando de uma complexidade que está presente no discurso de diversos entrevistados ao longo da projeção.
O esforço aqui está em juntar esses depoimentos para explicitar a distância que pode haver entre as opiniões envolvendo Lampião e procurar enquadrar a maior parte desse depoimento entre dois grupos mais claros: pesquisadores e familiares. E essa estratégia encerra fortemente as inúmeras frentes que vão se abrindo ao longo do documentário, criando uma espécie de filtro constante para histórias pessoais e algumas características de Virgulino. Em determinado momento da projeção, há espaço para debater vaidade, a violência de seu grupo, atos específicos realizados pelo mesmo, e até se Lampião bebia uísque ou não, mas tudo isso constantemente tratado com certa superficialidade, quase que como fuga para não ter de abordar questões polêmicas levantadas sobre a figura. Por essas razões, “Lampião, Governador do Sertão” funciona mais como exposição de determinadas histórias, curiosidades e uma espécie de síntese histórica geral. A quantidade de material de arquivo presente no documentário chama atenção, aliás, uma parte da família de Lampião está no filme e provavelmente possui uma vasta coleção de imagens do cangaceiro. Além disso, a obra consegue conectar parte do imaginário contemporâneo do Virgulino à questões diretas da cultura popular, desde o cordel até Luiz Gonzaga.
Talvez esse seja o trunfo do filme, rememorar sua trajetória e servir como porta de entrada para que haja um interesse maior em estudar a figura nos dias contemporâneos, que parece estar cada vez mais apagado para novas gerações, especialmente quanto à realidade de seus feitos. Não por acaso, existe uma sequência que é gravada em uma escola, onde o professor explica como é ensinado Lampião nas salas de aula hoje em dia e qual a perspectiva abordada. Ainda que a cena seja muito curta e não consiga levantar um debate mais denso que o apresentado pelas crianças, possui relevância na tentativa de demonstrar essa nova geração e suas perspectivas.
Por fim, “Lampião, Governador do Sertão” possui uma grande quantidade de materiais de arquivos que são capazes de enriquecer a experiência do espectador, especialmente na construção de um trabalho imagético da caracterização do cangaço e suas vaidades. Acaba trabalhando com imagens de outros filmes para encontrar uma forma mais simples de representação que não permaneça apenas na oralidade, o que apesar de não ter nenhum efeito negativo no documentário, pouco acrescenta, além de se debruçar em uma pergunta que parece nunca querer responder. E mesmo que não haja uma resposta fácil, poderia ter encontrado caminhos que abrisse margem para a discussão, oferecendo ao espectador mais ferramentas para que essa discussão possa ser feita após a sessão. Wolney se contenta com a ambiguidade a partir de um caráter mais fixo na presença cultural regional, o que é extremamente válido, mas não dá conta da dimensão de seu próprio personagem. Ps: Se o leitor pesquisar “Lampião” no Google, ele é citado como “músico”.