Kunhangue Arandu: A Sabedoria das Mulheres
A permanência da cultura
Por Vitor Velloso
Durante o CineOP 2021
“Kunhangue Arandu: A sabedoria das Mulheres” de Alberto Alvares e Cristina Flória, em exibição no CineOP 2021, revela a importância das mulheres indígenas, suas lutas por sobrevivência, transmissão da cultura e perpetuação. Há séculos os povos indígenas sofrem com o genocídio, que se manifesta tanto pela terceirização da violência direta, quanto pelas inúmeras tentativas de apagamento, histórico, cultural, linguístico e da existência dos povos nativos. Aqui, cabe uma breve introdução de como parte desse processo ocorreu e de como essa terceirização ganha um caráter particular a partir do atual governo.
O negócio é de uma complexidade absurda. Primeiramente é necessário compreender que esse genocídio não é parte apenas da história brasileira, mas sim da América Latina como um todo. Da América Central ao sul do continente, são inúmeros povos que foram dizimados, com sua cultura exterminada. Na frente desse massacre estão as instituições, os poderes públicos e civis que operam nas bases dessa corrupção. A Colômbia é um caso explícito disso e o Brasil disputa fortemente essa corrida pelo extermínio. Todos os governos contribuíram de alguma forma para que isso fosse mantido, uns mais outros menos. E é preciso dizer isso para que não façamos um exercício de esquecimento e toda a culpa recaia sobre o atual governo federal (que indica de maneira clara seu interesse em destruir os nativos e travar uma acirrada refrega com o meio-ambiente, não por acaso o ex-ministro da “mineração”, Ricardo Salles deixa um legado de terra arrasada).
Mas “Kunhangue Arandu: A Sabedoria das Mulheres” é didático na maneira como expõe o atropelo na constituição, elencando as leis que protegem os índios e como as mesmas foram ignoradas em nome do “desenvolvimento”, ou seja, pouco importa se vamos retirar o território sagrado das pessoas que vivem da terra, exterminar uma parte da sociedade, destruir nossa memória e dizimar uma cultura inteira. O importante aparentemente é gerar comércio, se possível para empreiteiras de capital internacional. Porém, essa violência não só surge do Estado, como é permitida e encorajada pelo mesmo, fomentando o ódio na população para que empresários, fazendeiros, latifundiários possam alvejar os indígenas sem que haja qualquer forma de reação. E o documentário não apenas projeta como esse processo é realizado, como esclarece que as mulheres indígenas, em especial, não possuem lugar na sociedade. Ou seja, além da necessidade de ocupação de um território que já lhe pertence (sem confundir com propriedade privada), teve que se impôr diante sociedade para poder falar, fazer parte de debates que interferem em sua vida de forma direta.
Nesse sentido, o projeto consegue transmitir parte dos conhecimentos dessas mulheres e mostrar a grande importância não apenas para a manutenção da cultura indígena, mas para compreendermos o verdadeiro processo de formação cultural brasileiro. Para longe da “democracia racial” e o delírio da burguesia (em parte, de setores progressistas liberais), o conhecimento indígena é fundamental para fazermos uma análise da situação do país. Ainda que isso seja feito através de um “paralelo” de suas crenças. Uma análise rigorosa, crítica, totalizante da política nacional e de sua cultura, irá atravessar o debate de como os povos indígenas são exterminados e/ou segregados da sociedade. E “Kunhangue Arandu: a sabedoria das mulheres” ultrapassa esse fetiche pela causa indígena e escancara seus rituais, suas lutas e a maneira de compreender o mundo através da terra. É uma obra que não está articulada em uma verve de panfletagem, mas de denúncia através de dispositivos, em sua maioria, de exposição dessa realidade. Não por acaso, alguns trechos soam como um audiovisual institucional, com algumas transições em fade, uma grande quantidade de textos na tela e urgência em contextualizar de maneira didática parte dos assuntos expostos pelas personagens.
E é por isso que o documentário consegue funcionar para além de resolução expositiva, pois enxerga essas mulheres como protagonistas do próprio processo, expondo a perda de identidade e as dificuldades de permanecerem vivas, com a Constituição rasgada e um boicote do Estado para exterminá-las. As mulheres Guarani tentam manter o nhandereko, o modo de ser Guarani e o filme enquadra essas vidas a partir disso.