Klondike – A Guerra na Ucrânia
Malaysia Airlines Voo 17
Por João Lanari Bo
Festival de Sundance 2022
A guerra que testemunhamos no Leste Europeu – perplexos e atônitos – não começou em 2022, afirma Maryna Er Gorbach, realizadora de “Klondike – A Guerra na Ucrânia” – começou em 2014, logo depois da ocupação russa da Crimeia. Na sequência, separatistas pró-Rússia nas províncias de Donetsk e Lugansk tomaram prédios do governo ucraniano em 2014 e proclamaram as regiões como “repúblicas populares” independentes. Até fevereiro de 2022, quando o exército russo invadiu a Ucrânia, cerca de 14 mil pessoas tinham morrido nos combates entre separatistas e forças ucranianas em Donbass, como é conhecida a região. A Ucrânia acusa a Rússia de apoiar os rebeldes militar e financeiramente, acusação que Moscou nega.
O filme em tela se desenrola num tempo compacto, poucos dias, com o epicentro trágico de 17 de julho de 2014, quando um míssil antiaéreo de fabricação russa, disparado pelos separatistas, derrubou o Boeing 777 da Malaysia Airlines que ia de Amsterdam para Kuala Lumpur, matando 283 passageiros e 15 tripulantes. O avião caiu próximo ao vilarejo Hrabove, ao norte de Torez, cidade ao leste da região de Donetsk, perto da fronteira com a Rússia – exatamente onde fica a residência do casal de protagonistas, Irka e Tolik. O momento da queda foi registrado por testemunhas: fotografias do local do acidente mostram peças quebradas e espalhadas da fuselagem, partes do motor, assim como corpos e passaportes. Alguns dos destroços caíram perto de Hrabove, e são avistados pelos personagens. Dezenas de passageiros caíram nos campos de cultivo e nas casas: não houve sobreviventes. Entre as vítimas estava mais de uma centena de cientistas da International AIDS Society, que iriam participar de uma conferência em Melbourne, na Austrália. A caixa preta da aeronave não foi encontrada até hoje – poucos dias antes, um dos líderes de milícias pró-russas no leste da Ucrânia, Igor Girkinm (também conhecido por Igor Strelkov), afirmou que qualquer avião que sobrevoasse a região seria abatido.
“Klondike – A Guerra na Ucrânia” não enfatiza o abate patético como evento condutor da narrativa: mas ele gera obviamente uma tensão a mais na atmosfera, atraindo milicianos e soldados russos à casa de Irka, grávida e à beira do parto. Claro, com a queda do avião o número de mortos aumentou subitamente, no entorno da casa, um pequeno sítio que abriga também uma vaca leiteira. A casa, aliás, já fora vítima de um míssil vindo não se sabe de onde. Mas a guerra e sua violência estão, nesse início, em algum ponto do infinito visual, fora do foco imediato da capacidade visual dos personagens, a despeito do impacto destrutivo. A maior parte do filme parece acontecer em tempo real, contrapondo as pressões da gravidez e do filho que se anuncia, à guerra da qual o casal não consegue escapar. A tensão exterior entra no interior do lar através do irmão de Irka, Yaryk, desconfiado que o cunhado possa estar apoiando os russos – e também do amigo Sanya, que pega sem permissão a camionete de Tolik para prestar serviços aos separatistas. Os planos são abertos, amplos, mesmo no interior da casa semidestruída – panorâmicas e travellings margeiam o abismo desse conflito impiedoso, sem os truques que tentam dar um sentido de autenticidade às imagens de violência. Evitando situações claustrofóbicas, Maryna Er Gorbach – que também escreveu o roteiro e editou o filme – concentra-se no casal rural que não parece inclinado a juntar-se às milícias pró-Rússia, mantendo-se de alguma forma leal aos vínculos ucranianos.
Um longo processo político-diplomático subjaz à trama particular de “Klondike – A Guerra na Ucrânia”. Após extensas negociações, Ucrânia e Rússia chegaram a um entendimento, em 1º de outubro de 2019, para tentar encerrar a guerra em Donbass. O Presidente francês Macron e a chanceler alemã Angela Merkel participaram das negociações, ao lado dos Presidentes Putin e Zelensky. O acordo previa eleições livres nos territórios de Donetsk e Lugansk, sob observação e verificação internacional, e posteriormente esses territórios seriam reintegrados à Ucrânia com status especiais, de acordo com o resultado da votação. Cerca de 3,6 milhões de pessoas vivem na região, a maioria fala russo, em função, entre outros fatores, da migração de trabalhadores da Rússia para a região durante a era soviética. Pesquisa feita por entidade internacional, realizada em março de 2019, reportou que 55% da população das áreas afetadas pelo conflito favoreciam reintegração com a Ucrânia: desses, 24% apoiavam a reintegração total na forma como era antes da guerra, enquanto 33% apoiavam o retorno, mas com a região de Donbass com status especial dentro da Ucrânia. A tensão escalou e, em fevereiro de 2022, a Rússia invadiu o território ucraniano sob o pretexto de “libertar” Donetsk e Lugansk, e “desnazificar” a Ucrânia.
Acredite, se quiser.