Khrustalyov, Meu Carro!
Tempos obscuros e selvagens
Por João Lanari Bo
Festival de Cannes 1998
Um dos fenômenos associados ao cinema, desde os primórdios, é a capacidade de transporte que oferece ao espectador, transporte mental e psíquico – na terminologia contemporânea, a famigerada imersão, aquele mergulho que arrasta nossos sentidos para uma atmosfera outra, para além do imediato que nos circunda. Como isso se dá, como os filmes são capazes de construir uma fenomenologia da percepção – foi e é tema de longos e acalorados debates. O que importa aqui é destacar uma imersão particular e efetiva: a sensação que se depreende de “Khrustalyov, Meu Carro!”, o longa que Aleksei German completou em 1998, em plena Rússia pós-comunista. Durante as quase duas horas e meia de ação, mergulhamos numa outra Rússia, aquela da longa ditadura stalinista, exatamente num curto e dramático momento de transição – a morte de Stálin, no início de março de 1953. Qualquer semelhança com os dias atuais é mera coincidência.
Delineado em roteiro que German escreveu com sua esposa, Svetlana Karmalita – por sua vez adaptado de texto do poeta Joseph Brodsky sobre a vida comunal em um apartamento soviético – “Khrustalyov, Meu Carro!” tem como marco temporal os últimos dias de fevereiro daquele ano, debaixo do frio moscovita, quando Stálin exalou seus últimos delírios paranoicos, o “complô dos médicos” – uma conspiração de médicos judeus, apoiada pela CIA, em vias de assassinar os principais quadros do Partido Comunista, inclusive o próprio Stálin. Nosso protagonista é Yuri Klenski – um corpulento bigodudo sem um fio de cabelo, general e neurocirurgião, extrovertido e pândego – que administra família e assemelhados no caos do lar ao mesmo tempo que toca um hospital cheio de doutores igualmente pândegos e pacientes à beira da histeria. A descrição remete a um tipo de encenação própria de um teatro farsesco, muita gente em cena, que passa pelo olho da câmera comentando …bem, comentários de todo o tipo, non-sense, testemunhos oculares da paranoia reinante.
Afinal, como reproduzir a vida soviética nos últimos dias de Stálin? Fotografia preto-e-branco em alto contraste, câmera na mão acompanhando o frenesi, cenários claustrofóbicos e camadas dissonantes de pista sonora – pode ser uma alternativa. Claro, não é uma evidência imediata decodificar tudo isso, e cabe ao espectador deixar-se imergir para, em algum lugar fulgurante, captar a vibração histórica de imagens e sons propostos. Numa época em que o controle sobre qualquer tipo de informação pública era ferreamente exercido, Stálin sofre um derrame devastador e alguém tem de cuidar – sobra para Yuri Klenski, que além de médico é judeu dotado de enorme apetite sexual. Se foi perseguido, preso, torturado e sodomizado durante o “complô”, não importa – é ele quem vai checar a saúde do Grande Líder.
Paradoxalmente, o enredo de “Khrustalyov, Meu Carro! é linear: acontecimentos se sucedem numa linha do tempo, os poucos dias de fevereiro gelado, Yuri bem ou mal conduz a narrativa. Mas estamos em um pesadelo: fragmentos passam a uma velocidade vertiginosa, somos levados a orientar nossa leitura sobre pedaços de vitalidade que se apresentam, carregados de farsa e sarcasmo, vulgares e brutais. Toda essa estética corrosiva é, mal resumindo, uma metáfora dos tempos obscuros e selvagens de Stálin. Tempos psicóticos, para utilizar um termo desgastado da psicologia. O realizador, Aleksei German, disse em entrevista que se trata de uma metáfora para o terrível trauma psicológico da violação anal nacional pelo Estado, pelos czares e pelos bolcheviques. A Rússia, enfim, é um país de extremos.
Atribui-se a Nikita Khruschov uma singular descrição do dia em que Stálin teve o derrame que o matou: Lavrenti Beria, excitado, debruçou-se sobre o corpo imobilizado do líder, acusando-o de tirania e crueldade – um breve abrir e fechar de olhos foi suficiente para que se arrependesse e ficasse de joelhos pedindo perdão. A cena pode ter sido fantasiosa, mas sugere o poder aterrorizador que Stálin concentrava, fundado na racionalidade marxista-leninista e envolto em uma camada absolutista análoga à dos czares – até o sanguinário Beria o temia (de acordo com historiadores meticulosos, entretanto, Beria não esteve presente no leito de morte do Comandante Supremo).
Na versão de German, Yuri Klenski chega na dacha do ditador – a cena foi filmada na verdadeira dacha de Stálin, em Kuntsevo – toma um banho, recompõe-se e é recebido por Beria. Massageia a barriga inchada de Stálin, a fim de aliviar a pressão: não teve efeito, ele já estava morto. Beria então beija Klenski, abre a porta e grita para seu motorista: “Khrustalyov, meu carro!”
Não sabemos, e provavelmente nunca saberemos, o que realmente se passou naquele dia na dacha. Sabemos, graças ao documentário de Sergei Loznitsa, o que se passou logo depois – o funeral faraônico de Joseph Stálin.